Shinsekai Yori ~Brazilian Portuguese~:Parte 01 Completa

From Baka-Tsuki
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Capítulo 01

Tarde da noite, depois de tudo ficar em silêncio, eu afundei na cadeira e fechei meus olhos.

A cena que surge do fundo da minha mente é sempre a mesma, estampada permanentemente no meu cérebro.

Na escuridão dos fundos do templo, uma chama queima acima do altar. Faíscas estouram do fogo como flocos de neve laranja, interrompendo o som do cântico vindo de baixo da terra.

Toda vez eu me pergunto o porquê desta cena.

Desde aquela noite quando eu tinha doze anos, vinte e três anos se passaram. Naquela época, várias coisas aconteceram. (Incidentes mais tristes e mais aterrorizantes do que eu poderia imaginar.) Eles iriam arrancar pela raiz tudo que eu acreditava até então.

E, mesmo agora, por que é que aquela noite é sempre a primeira coisa que vem na minha cabeça?

Sugestão hipnótica é tão poderosa assim?

De vez em quando, eu ainda tenho o sentimento de que eu ainda não acordei completamente da lavagem cerebral.

Agora, meus motivos para registrar esta corrente de circunstâncias rodeando aqueles eventos é como está a seguir.

Várias coisas voltaram ao pó, e desde aquele dia, dez anos se passaram.

Um período de dez anos não significa muito na grande teia dos acontecimentos. Mas problemas aumentaram, e ironicamente, quando a nova ordem foi instalada, dúvidas sobre o futuro começaram a brotar. Durante esse período, eu passei algum tempo estudando história, e percebi que nós humanos, não importando quantas lágrimas precisemos derramar para aprender a lição, no momento que elas se secam nós esquecemos. Esse é o tipo de seres que somos.

Claro, ninguém deveria esquecer a promessa de que a indescritível tragédia que ocorreu naquele dia nunca ocorresse de novo. Eu quero acreditar nisso.

Mas será que um dia, em um futuro onde as memórias das pessoas desaparecerem, a nossa tolice cause nossa viagem até aquele mesmo caminho novamente? Não consigo me livrar deste medo.

Por causa disso eu repentinamente decidi escrever tudo isso, mas de vez em quando me encontrei confusa. Como se minhas memórias tivessem sido comidas aqui e ali, fazendo eu não me lembrar da realidade de detalhes importantes.

Apesar de eu checar com pessoas que estiveram lá na época, como tendemos a criar detalhes para as lacunas em nossa memória, eu fiquei surpresa em descobrir que mesmo as memórias que compartilhamos são contraditórias.

Por exemplo, logo antes de encontrar o Falso Minoshiro no Monte Tsukuba, eu coloquei óculos de sol tingidos de vermelho. Eu lembro desse fato claro como o dia, mas por algum motivo, Satoru tem certeza que eu não estava usando nenhum tipo de óculos. E não apenas isso, Satoru também deu a entender que achar o Falso Minoshiro foi um feito que ele fez sozinho. Claro, uma noção ridícula como essa é absolutamente falsa.

Eu engoli meu orgulho, entrevistei o máximo de pessoas em que pude pensar, e me deparei com ainda mais pontos conflitantes. Durante esse processo, uma realidade inegável me ocorreu. Não existia uma única pessoa que a memória não tivesse sido distorcida para ocultar suas próprias falhas.

Enquanto eu estava rindo de pena da tolice humana e escrevendo minha nova descoberta, eu de repente percebi que não havia base alguma para me excluir dessa regra. Da perspectiva de outra pessoa, não haveria dúvida de que as memórias que estou escrevendo foram distorcidas apenas para mostrar meu lado bom.

Portanto, eu gostaria de dizer que já que esta história é da minha própria perspectiva, ela pode sofrer de alguma distorção para me auto justificar. Acima de tudo, o número de mortes que foram consequências das nossas ações pode ser uma motivação para tal auto justificação, mesmo que seja feito inconscientemente.

Tendo dito isso, eu vou tentar desenterrar a verdade de minhas memórias o melhor que eu posso porque quero encarar os fatos e retratar realisticamente os eventos que ocorreram. Além disso, quero imitar o estilo de histórias antigas na esperança de recriar meus pensamentos e sentimentos naquela época.

Este rascunho é escrito com tinta à prova de desbotamento e no que se diz ser papel antioxidante que pode durar um milênio. Quando estiver terminado, não mostrarei para ninguém (exceto Satoru, talvez, e perguntar sua opinião), colocar em uma cápsula do tempo e enterrar fundo embaixo da terra.

Então farei mais duas cópias para um total de três serem deixadas para trás. Se algum dia no futuro a Velha Ordem, ou algo assim, for restaurada e todas as publicações forem censuradas, a existência desse registro deve ser mantida em segredo pelo máximo de tempo possível. Eu acho que três é o suficiente para tal situação.

Em outras palavras, esse registro é uma longa carta deixada para meus conterrâneos daqui a mil anos. (Quando for lido, nossas verdadeiras intenções serão reveladas, e se elas devem ou não começar um novo caminho deve se tornar óbvio.)

Eu ainda não me apresentei.

Meu nome é Saki Watanabe. Eu nasci na cidade de Kamisu 66 em 10 de Dezembro, 210.

Logo antes de eu nascer, floresceram vários simultaneamente de um bambu que só floresce a cada cem anos. Neve caiu no meio do verão, todos pensaram que não veriam uma gota de chuva por três meses. Basicamente todo tipo anormal possível de fenômenos meteorológicos ocorreram. E então na noite de 10 de dezembro, quando todos pensaram que a Terra estava coberta em trevas, um feixe de um relâmpago iluminou o que muitos depois diriam ser um dragão de escamas douradas nadando nas fendas entre as nuvens.

... A realidade é que nada disso ocorreu.

210 foi um ano normal, e como todo infante que nasceu naquele ano na cidade de Kamisu 66, eu era uma criança comum.

Mas para minha mãe, eu não era. Ela estava perto do fim de seus trinta anos e estava convencida de que nunca iria ter filhos. Em nossa época, ter um filho na casa dos trinta é considerado uma gravidez bem tardia.

Além do mais, minha mãe, Mizuho Watanabe, tinha a importante função de bibliotecária. As decisões dela não apenas influenciavam o futuro de nossa cidade, mas em certos casos poderia também resultar na morte de outros. Ter que aguentar tamanha pressão todos os dias, além de ser cuidadosa com sua gravidez, não é o tipo de dificuldade que as pessoas normalmente têm que lidar.

Durante esse período, meu pai, Takashi Sugiura, era o prefeito da cidade. Apenas isso já era um trabalho atarefado. Mas próximo a época do meu nascimento, o trabalho de bibliotecário vinha com uma responsabilidade incomparavelmente maior do que a de prefeito. Claro que ainda é assim agora, mas provavelmente era ainda mais forte antes.

Minha mãe estava no meio de uma reunião sobre a classificação de uma coleção de livros recém-descoberta quando entrou em trabalho de parto. Isso foi uma semana antes da data esperada de nascimento, mas já que sua bolsa quebrou sem aviso prévio, ela imediatamente foi transportada para o hospital de maternidade perto dos arredores da cidade. O som do meu primeiro choro foi ouvido até quase dez minutos depois. Infelizmente, meu cordão umbilical estava enrolado em meu pescoço. Meu rosto estava roxo e eu estava impedida de chorar direito. A assistente de parto, que era nova no trabalho, quase desmaiou de pânico com isso. Por sorte, o cordão foi cortado facilmente e eu finalmente respirei o ar deste mundo e soltei um choro saudável.

Duas semanas depois, na mesma maternidade, Maria Akizuki, que mais tarde se tornaria minha amiga, nasceu. Além de ser um nascimento prematuro, ela estava, assim como eu, com o cordão umbilical enrolado em seu pescoço. Mas a condição dela era bem mais séria que a minha; ela estava quase morta quando nasceu.

A assistente de parto, armada com a experiência de meu nascimento, aparentemente lidou com isso bem calmamente. Se tivesse tido um pequeno deslize e o cordão fosse cortado apenas um pouquinho depois, não há dúvidas de que Maria teria morrido.

Quando eu escutei essa história pela primeira vez, eu estava exaltada de que de alguma forma salvei a vida de minha amiga indiretamente. Mas agora, sempre que lembro disso, sou atingida com uma onda de pensamentos complicados. Porque se ela nunca tivesse nascido, nunca teria tido uma perda tão grande de vidas humanas...

Vamos voltar para a história. Eu passei minha feliz infância rodeada pela natureza exuberante da minha cidade.

Kamisu 66 consiste em sete vilas espalhadas em uma circunferência de cinquenta quilômetros. É separada do resto do mundo pela Barreira Sagrada. Daqui a mil anos, a barreira pode não existir mais, então explicarei rapidamente. É um manto de palha grosso pendurado com serpentinas de papel (Shimenawa e Shide) que age como um escudo, prevenindo de entrar na vila coisas impuras.

Crianças eram avisadas para nunca pisar fora da barreira. Espíritos do mal e monstros rodeavam do lado de fora e toda criança que fosse se aventurar sozinha iria sofrer terrivelmente.

— Mas que tipo de coisas assustadores estão lá, exatamente? — Eu lembro de perguntar para meu pai, embora menos fluentemente, um dia quando eu tinha perto de seis ou sete anos de idade.

— Muitas coisas diferentes. — Ele olhou por cima de seus documentos. Descansando seu queixo em sua mão, ele olhou para mim carinhosamente. Aqueles calorosos olhos castanhos estão queimados em minha memória até este dia. Meu pai nunca me olhou severamente e apenas uma vez ele levantou sua voz. Era porque eu não estava prestando atenção para onde eu estava indo e iria cair em um buraco aberto no chão se ele não tivesse me avisado.

— Saki, você já sabe, não é? Sobre os Ratos Monstros, Gatos Trapaceiros e Cães Balão.[1]

— Mas a mãe disse que esses são inventados.

— Os outros podem ser, mas os Ratos Monstros existem. — Ele disse tão despreocupadamente que fiquei chocada.

— Mentiras.

— Não são mentiras. Ratos Montros foram recrutados para ajudar a construir a vila recentemente também.

— Eu nunca os vi.

— Nós não deixamos as crianças os verem. — Meu pai não disse o porquê, mas imaginei que fosse porque Ratos Monstros são muito horríveis para serem vistos.

— Mas se eles escutam os humanos, então não são tão assustadores, certo?

Meu pai abaixou os documentos que ele estava vendo e levantou sua mão direita. Enquanto ele cantava um feitiço em voz baixa, uma fibra fina de papel se transformou, como tinta invisível sendo revelada, em um complicado padrão tecido no papel. O selo de aprovação do prefeito.

— Saki, você sabe o que “obediência falsa” significa?

Eu balancei minha cabeça silenciosamente.

— Significa aparentar obedecer a alguém, mas na verdade pensar o oposto em segredo.

— O que você quer dizer com “o oposto”?

— Enganar a outra pessoa e secretamente planejar traí-la.

Meu queijo caiu.

— Pessoas assim não existem.

— Você está certa. Pessoas traindo a confiança das outras é impossível. Mas Ratos Monstros não são pessoas.

Pela primeira vez, eu senti as agitações do medo.

— Ratos Monstros nos adoram e nos obedecem porque temos o cantus. Mas nós não sabemos como eles vão se comportar com crianças que ainda não despertaram seu cantus. É por isso que evitamos que os Ratos Monstros e as crianças se encontrem.

— Mas quando você os dá trabalho para fazer, eles não vêm sempre para a cidade?

— Durante esses tempos sempre há um adulto os supervisionando. — Meu pai abaixou os documentos em uma caixa de arquivos e levantou sua mão novamente. A tampa tremeu e derreteu na caixa, formando um bloco oco lacrado. Como ninguém mais sabe o que ele visualizava quando usava seu cantus, é difícil para qualquer outra pessoa além de meu pai reabrir a caixa sem quebrá-la.

— De qualquer forma, nunca vá para o lado de fora da Barreira Sagrada. Dentro, a força da barreira nos deixa seguros, mas se você por um pé para fora, não poderá ser protegida pelo cantus de ninguém.

— Mas os Ratos Monstros...

— Não são apenas os Ratos Monstros. Você aprendeu as histórias sobre os Espíritos Malignos e os Demônios do Carma na escola, certo?

Minha respiração travou em minha garganta.

Histórias sobre os Espíritos Malignos e os Demônios do Carma foram ensinadas repetidamente durante nos primeiros anos de desenvolvimento. Se tornaram marcadas em nosso subconsciente. Mesmo que as versões que aprendemos na escola fossem feitas para crianças, elas ainda nos davam pesadelos.

— Realmente existem Espíritos Malignos, ...Demônios do Karma e coisas assim do lado de fora da Barreira Sagrada?

— Uh huh. — Meu pai sorriu levemente para me confortar.

— Essas são lendas antigas, eles não existem agora...

— É verdade que eles não foram vistos pelos últimos cento e cinquenta anos, mas é melhor estar preparado para o inesperado. Saki, você não iria querer encontrar do nada um Espírito Maligno como o Menino Coletor de Ervas, não é?

Eu concordei silenciosamente.

Aqui, eu vou resumir as histórias dos Espíritos Malignos e dos Demônios do Karma. Entretanto, não é a versão de conto de fadas infantil, mas a versão adulta completa que todos aprendem quando entram na Escola Sábia.


Conto do Espírito Maligno

Esta é uma história de cerca de cento e cinquenta anos atrás. Havia um menino coletando ervas na montanha. Focado em sua atividade, ele chegou à Barreira Sagrada. Ele já havia pego quase todas as ervas de dentro da barreira quando aconteceu de ele olhar para cima e ver que ainda havia muitas ervas do lado de fora.

Ele sempre foi avisado para nunca sair da Barreira Sagrada. Se, por algum motivo, ele tivesse que sair, deveria ter um adulto junto.

Mas não havia nenhum adulto por perto. O menino ficou tentado e pensou que se saísse só um pouquinho ficaria tudo bem. Ele colocou a cabeça para fora primeiro. Ele apenas precisava passar por baixo da barreira, pegar algumas ervas e voltar. Estaria tudo bem.

O menino escorregou silenciosamente por baixo da corda. As serpentinas balançaram e farfalharam.

Naquele instante, ele subitamente teve um sentimento desagradável. Além da culpa de desobedecer aos adultos, havia outro sentimento de inquietude que ele nunca havia experenciado antes.

Reafirmando para si que não havia nada de errado, ele se aproximou das ervas.

Então ele viu um Espírito Maligno vindo na direção dele.

Mesmo que fosse da mesma altura que o menino, era de uma aparência assustadora. Sua ira rodava como uma auréola de fogo, queimando tudo ao seu redor. Ao se aproximar, o Espírito Maligno ceifou tudo em seu caminho e fez a folhagem explodir em chamas.

O menino ficou pálido, mas se forçou a não gritar e andou para trás. Se ele pudesse apenas voltar por baixo da corta, o Espírito Maligno iria sumir.

Mas um galho quebrou em seus pés.

O Espírito Maligno virou sua cabeça, com sua face completamente desprovida de emoção. Ele encarou o alvo de sua ira.

O menino se abaixou ao passar pela corda e correu o mais rápido que podia. Tudo ficaria bem contanto que ele entrasse na proteção da barreira.

Mas quando ele olhou para trás, o Espírito Maligno também havia passado pela corda!

Naquele instante, o menino percebeu que havia feito algo irreparável. Ele havia convidado o Espírito Maligno para dentro da barreira.

O menino chorava ao correr pelo caminho da montanha. O Espírito Maligno o perseguiu implacavelmente.

O menino correu pela borda da barreira, para a corrente na direção oposta a da vila.

Quando olhou para trás, o rosto do Espírito Maligno estava escondido pela vegetação rasteira. Apenas seus olhos brilhantes e sua boca maliciosa eram visíveis.

O Espírito Maligno estava seguindo um caminho para a vila.

Ele não podia deixar isso acontecer. Se o Espírito Maligno o seguisse, a vila inteira provavelmente seria destruída.

Ao limpar a última vegetação rasteira, um penhasco puro apareceu para ele. O som do rio no fundo rebatia nas paredes. Através do desfiladeiro estava pendurada uma nova ponte de cordas.

O menino não atravessou a ponte. Ao invés disso, ele foi seguindo a beirada do penhasco.

Quando olhou para trás, o Espírito Maligno havia chego na ponte e estava procurando por ele.

O menino correu determinantemente.

Pouco após isso, uma outra ponte apareceu ao longe.

Ele se aproximou da silhueta da ponte contra o céu nublado. Desgastada por anos de exposição aos elementos, ela balançava assustadoramente como se acenasse para ele.

A ponte poderia cair a qualquer momento. Ninguém a havia usado em mais de dez anos e ele sempre havia sido avisado.

Vagarosamente, o menino começou a atravessar a ponte.

As cordas rangiam. As tábuas eram feitas de carvalho, mas pareciam prontas para quebrar a qualquer instante.

Quando ele estava quase na metade da travessia, a ponte balançou repentinamente. Olhando para trás ele viu que o Espírito Maligno também havia pisado na ponte.

A ponte balançava mais e mais ferozmente cada vez que o Espírito Maligno se aproximava.

O menino olhou para baixo no fim do vale. Era vertiginosamente longe.

Ele olhou para cima. O Espírito Maligno já estava chegando perto dele.

Quando ele pode ver claramente a face desagradável do Espírito Maligno, o menino brandiu a foice que ele estava carregando, e em um movimento, cortou as cordas da ponte.

A ponte balançou para baixo e o menino quase escorregou, mas conseguiu, de alguma forma, pegar na corda.

O Espírito Maligno caiu no fundo? O menino olhou. De algum jeito, o Espírito Maligno também estava escalando pela corda. Ele virou seu olhar assassino para ele devagar.

A foice havia caído no vale. Ele não podia cortar as cordas mais.

O que ele deveria fazer? Ele rezou para os céus. Não importa que eu morra; por favor, não deixe o Espírito Maligno entrar na vila.

O desejo do menino alcançou os céus? Ou foram as cordas que não conseguiam mais aguentar o peso?

A corda rompeu, enviando os dois para o vale. O menino e o Espírito Maligno desapareceram de vista.

Espíritos Malignos nunca apareceram desde então.


Há algumas lições nessa história.

Crianças podem facilmente entender que está as ensinando a permanecer dentro da Barreira Sagrada. Para crianças um pouco mais velhas, está provavelmente contando que deveríamos nos preocupar mais com a vila do que conosco, e estarmos preparados para nos sacrificar para isso.

Mas quanto mais inteligente você for, mais difícil é de entender a verdadeira lição.

Quem poderia pensar que o real objetivo dessa história é nos contar que Espíritos Malignos realmente existem?


Conto do Demônio do Carma

Esta história é de cerca de oito anos atrás. Havia um garoto que morava em uma vila. Ele era uma criança incrivelmente brilhante, mas tinha um defeito. Conforme crescia, esse defeito se tornou mais e mais óbvio.

Ele era extremamente orgulhoso de sua inteligência e olhava para todo o resto com desdém.

Ele pretendia aceitar os ensinamentos da escola e dos outros adultos, mas as lições importantes nunca alcançaram seu coração.

Ele começou a zombar da tolice dos adultos e ria das leis do mundo.

Arrogância planta as sementes do carma.

O menino gradualmente se afastou de seu círculo de amigos. Solidão se tornou sua única companheira e confidente.

Solidão é o canteiro do carma.

Em seu isolamento, o menino passou muito tempo pensando. Ele pensou sobre coisas proibidas e questionou coisas que deveriam ter sido deixadas quietas.

Pensamentos impuros deixavam o carma crescer sem ser verificado.

O menino sem saber deixou mais e mais carma crescer, e se transformou em algo inumano — um Demônio do Carma.

Antes de qualquer um saber, a vila estava vazia; todo mundo havia fugido com medo do Demônio do Carma. Ele foi viver na floresta, mas todos os animais de lá desapareceram também.

Conforme o Demônio do Carma andava, as plantas ao seu redor se contorciam de todas as formas imagináveis e apodreciam.

Toda a comida que tocava instantaneamente se transformava em veneno letal.

O Demônio do Carma vagou sem rumo pelos mortos, deformando a floresta.

Eventualmente, ele percebeu que não deveria viver neste mundo.

O Demônio do Carma deixou a escuridão da floresta. Na frente de seus olhos, ele viu, enrolado em um esplendor brilhante. Havia chego em um profundo lago aninhado nas montanhas.

Ele andou para o lago, pensando que uma água pura como aquela certamente iria limpar seu carma.

Mas a água o envolvendo instantaneamente se tornou negra e turva, e começou a se tornar veneno.

Demônios do Carma não deveriam existir nesse mundo.

Ele entendeu isso, e silenciosamente desapareceu no fundo do lago.


A lição aqui é provavelmente mais direta que a da história do Espírito Maligno.

Mas é claro, isso não significa que entendemos o real significado por trás dela. No mínimo, não até aquele dia, onde em nosso incessante desespero e tristeza, vimos um verdadeiro Demônio do Carma com nossos próprios olhos...

Desculpe, às vezes quando estou escrevendo sou inundada por memórias que ameaçam me sufocar, e não posso controlá-las. Vamos voltar para a minha infância.

Como escrevi antes, Kamisu 66 é feita de sete vilas. No centro é onde está reunida a administração da cidade. Na margem oriental do Rio Tone está a vila de Kayawa. Para o norte, no meio de uma floresta lotada de grandes casas, está Matsukaze. No leste, a floresta se abre para o litoral, onde Shirasu está. Adjacente à Kayawa, na vila do sul está Suisha. Na outra margem do rio, frente ao noroeste, está a vila Miharashi, o qual o nome vem de sua localização. Alinhada com os arrozais no sul está Kogane, e Kunugibayashi no oeste.[2]

Meu lar é em Suisha. O nome provavelmente precisa de uma explicação. Dezenas de canais saindo do Rio Tone voam sobre Kamisu 66 e as pessoas vem e vão com barcos. Apesar disso, o constante movimento da água significava que era limpa o suficiente para se banhar, apesar de você ter de pensar duas vezes para beber. Em frente a minha casa, em adição a muitos Koi[3] de branco e vermelho vivo nadando por aí, havia também muitos moinhos de água, que é de onde o nome veio. Toda vila possui moinhos de água, nossa vila tem um número grande deles, e formam uma vista incrível. Em cima, atrás, embaixo, no centro... Esses são os que consigo lembrar. Talvez houvesse mais. Muitos eram usados para nos aliviar de tarefas mundanas como descascar arroz e moer trigo.

Entre eles há um tipo de moinho de água que só algumas vilas tinham, com lâminas de metal usadas para gerar eletricidade. A energia valiosa é usada para se utilizar os autofalantes no teto da câmara municipal. Uso de eletricidade fora isso era estritamente proibido pelo Código de Ética.

Todo dia antes do pôr do sol, os autofalantes iriam tocar a mesma melodia. É chamada “Going Home” e veio de uma parte de uma sinfonia escrita há muito, muito tempo por um compositor com o estranho nome de Dvorak. A letra que aprendemos na escola é algo assim.


O sol se põe sobre as montanhas distantes

Estrelas cravejam o céu

O trabalho de hoje acabou

Meu coração se sente leve

Na brisa fresca da noite

Venham, juntem-se

Juntem-se


A fogueira queimando brilhantemente na escuridão

Agora morre

Dormir vem fácil

Me convidando a desaparecer

Gentilmente cuidando de nós

Venha, nos deixe sonhar

Nos deixe sonhar


Quando a música toca, todas as crianças brincando nos campos deviam voltar para casa. É por isso que sempre que penso na música, cenários do pôr do sol aparecem em minha mente reflexivamente. A cidade durante o crepúsculo. Longas sombras no solo arenoso da floresta de pinheiros. Dezenas de céus cinzentos refletidos na superfície espelhada dos arrozais. Grupos de libélulas vermelhas. Mas as memórias mais vívidas são de assistir o pôr do sol do topo da colina.

Quando fecho meus olhos, uma cena vem à mente. Era algum momento entre o fim do verão e o começo do outono, quando o tempo estava começando a esfriar.

— Temos que ir agora. — Alguém disse.

Quando ouvi cuidadosamente, pude ouvir a fraca melodia sendo carregada pelo vento.

— Então vamos dizer que foi empate. — Satoru disse, e as crianças saíram dos esconderijos em grupos de dois e três.

Todo mundo, com idades entre oito e onze, haviam passado o dia inteiro comprometidas com um jogo em larga escala de Captura á Bandeira. É um jogo como uma prolongada guerra de bolas de neve no meio do inverno, onde você tem dois times que devem invadir o território uns dos outros e no fim quem conseguir roubar a bandeira do outro time vence. Naquele dia, nosso time havia cometido um grave erro no nosso movimento de abertura e parecia que iríamos perder.

— Isso não é justo. Estávamos prestes a ganhar também. — Maria pontuou. Ela tinha a pele mais clara dentre todos, e olhos grandes e claros. Além de tudo, seu cabelo vermelho flamejante a deixava bem notável.

— Se rendam logo.

— Sim, porque somos muito melhores. — Ryou concordou depois de Maria. Mesmo nesta idade, Maria tinha os trejeitos de uma rainha.

— Por que deveríamos nos render? — Eu perguntei indignada.

— Porque somos melhores. — Ryou repetiu o mesmo argumento velho.

— Mas vocês ainda não pegaram nossa bandeira. — Olhei para Satoru.

— É um empate. — Ele declarou.

— Satoru, você está nesse time, não está? Por que está do lado deles? — Maria vociferou.

— Não posso evitar, as regras dizem que o toque de recolher é ao pôr do sol.

— Mas o sol ainda não se pôs.

— Não se preocupe com esses detalhes, isso é só porque estamos no topo da colina, certo? — Eu disse, contendo minha irritação. Mesmo que normalmente fôssemos bons amigos, em horas como essa, Maria me irritava.

— Ei, nós realmente temos que ir. — Reiko disse preocupada.

— Quando ouvimos “Going Home” devemos retornar de imediato.

— Se eles se renderem, então podemos ir para casa. — Ryou imitou Maria.

— Parem com isso. Ei, juiz! — Satoru gritou exasperadamente a Shun. Shun se destacava de nós do topo da colina, observando a cena. Seu buldogue sentava quietamente a seu lado.

— O quê? — Ele respondeu logo após.

— Não diga “O quê?” para mim. Diga que é um empate.

— Vamos para casa, então. — Reiko disse e um grupo deles desceram a colina juntos, porque dividiam barcos para chegar em suas respectivas vilas.

— Esperem, ainda não terminamos.

— Estou indo, ou os Gatos Trapaceiros vão nos pegar.

Eles e Maria pareciam insatisfeitos, mas o jogo gradualmente acabou.

— Saki, nós deveríamos voltar também. — Satoru disse enquanto eu andava até Shun.

— Não vai embora?

— Sim. — Shun não tirou os olhos do cenário hipnotizante.

— Ei, vamos logo. — Satoru disse impaciente.

Shun pontuou silenciosamente.

— Lá, consegue ver?

— O quê?

Ele estava apontando na direção de Kogane, perto da borda entre os arrozais e a floresta.

— Lá, um Minoshiro.

Desde que éramos jovens, fomos ensinados que nossos olhos eram mais importantes do que qualquer outra coisa, então todos fomos abençoados com uma boa visão. Desta vez também, de centenas de metros de distância, eu pude discernir o formato branco de algo se movendo lentamente.

— É verdade.

— O quê tem? Não é como se fossem raros ou algo assim. — A voz normalmente calma de Satoru estava tingida com desgosto por algum motivo.

Mas eu não me movi. Eu não queria me mover.

O Minoshiro se movia em um ritmo de caracol pela trilha, pelo prado e desaparecendo na floresta. Enquanto eu rastreava seu caminho, minha atenção voltou para o Shun.

Eu não sabia ainda o nome da emoção que eu sentia. Enquanto eu estava ao lado dele olhando para a vila pintada pela luz do sol poente, meu peito se encheu com um doce, mas doloroso, sentimento.

Talvez esta também seja uma cena fabricada. Uma dramatização feita por uma mistura de episódios similares, salpicado com um pequeno tempero que chamamos de sentimento...

Seja como for, estas cenas ainda possuem um significado especial para mim até hoje. A memória final de uma vida em um mundo sem falhas. Um tempo onde tudo estava em seu lugar e não havia dúvidas sobre o futuro.

Mesmo agora, quando eu penso em meu primeiro amor, ainda sinto um brilho quente, como o sol poente. Mesmo assim, todo o resto logo seria engolido por um vácuo sem fim vazio de tristeza.

Capítulo 02

Eu vou falar um pouco mais sobre minha infância.

Em Kamisu 66, crianças precisam iniciar a escola aos seis anos. A que eu fui era chamada de Escola da Harmonia. Há duas outras escolas similares chamadas Amizade e Moralidade.

Naquela época, a população era um pouco maior que três mil. Eu descobri apenas após pesquisar sobre educação no passado antigo que ter três escolas para uma população tão pequena é aparentemente bem notável. Mas isso serviu apenas para mostrar que a verdadeira natureza da sociedade em que nasci era bem mais do que os olhos podiam ver. Sobre as outras estatísticas nesse mesmo período, mais da metade dos adultos na comunidade estavam, por qualquer motivo, perseguindo profissões relacionadas à educação.

Isso é inconcebível para uma economia monetária. Mas para uma comunidade baseada em cooperação mútua, dinheiro não é necessário. (A propagação de recursos humanos naturalmente se direciona para áreas em que mais se precisa, e essas pessoas completam as tarefas requeridas.)

A Escola da Harmonia estava a cerca de vinte minutos andando da minha casa. É ainda mais rápido de barco, mas os remos são muito grandes e pesados para crianças remarem, então andar é preferível.

A escola fica em um local quieto um pouco longe do centro da cidade, na borda sul de Kayawa. É uma estrutura única feita de madeira polida escura no formado de um A. A entrada da frente é a barra do A. Quando você entra, a primeira coisa que vê é a frase “Preze a Harmonia” emoldurada na parede. É o primeiro artigo na Constituição de Dezessete Artigos escrita por um sábio dos tempos antigos chamado Príncipe Shoutoku. Significa construir tudo em harmonia. É daí que o nome de nossa escola vem. Eu não sei que ditados estão sendo mostrados nas paredes da Amizade e da Moralidade.

Junto com a entrada havia as salas dos professores e as salas de aula. Minha classe estava alinhada no braço direito do A. Apesar do número de pessoas na escola, incluindo os docentes, não passar de cento e cinquenta, nós tínhamos vinte salas de aula. A ala administrativa estava na esquerda e os estudantes não eram autorizados a entrar.

No pátio na frente do prédio estavam os campos esportivos, ginásios e outros equipamentos de recreio, além de uma cerca onde criávamos animais como galinhas, coelhos, hamsters e mais. Os estudantes se revezavam cuidando dos animais. No canto do jardim havia uma caixa de instrumentos de madeira branca. Ninguém sabe para que serve; nos seis anos que ficamos na escola, nunca havia sido utilizada.

O pátio rodeado pelos três prédios escolares era um grande mistério. Estudantes eram estritamente proibidos de entrar e nunca tivemos uma desculpa para isso.

À parte da ala administrativa, não havia nenhuma janela que olhasse para o pátio. Então as únicas vezes que tínhamos a chance de espiar lá dentro era se estivéssemos por perto quando a porta estivesse aberta.

— ...Então, o que você acha do pátio? — Satoru perguntou com um sorriso assustador. Todos nós seguramos nossa respiração.

— Espere, você também não sabe o que tem lá, né? — Eu não o aguentava arrastando a tensão daquela forma.

— Bem, eu não, mas tem alguém que sabia. — Satoru disse, parecendo irritado por ter sido interrompido.

— Quem?

— Alguém que você não conhece.

— Não é um estudante?

— Ele já se graduou.

— Tinha que ser. — Eu tornei óbvio que desacreditava.

— Isso não importa, só diga o que ele viu logo. — Maria disse. Todos concordaram.

— Ok. Bem, pessoas que não acreditam não precisam ouvir... — Satoru olhou para mim sorrateiramente. Eu fingi não perceber. Teria sido melhor sair dali, mas eu realmente queria ouvir o que ele tinha a dizer.

— Quando estudantes estão presentes, os professores nunca abrem a porta que leva ao pátio, certo? Você sabe, a que fica em frente ao prédio da administração feita de madeira perene. Mas naquela época, eles acidentalmente esqueceram de conferir se havia pessoas em volta e abriram a porta.

— Você já nos contou sobre isso. — Ken o pressionou.

— Lá estava... um número gigante de túmulos! — Ele obviamente estava exagerando, mas todos os outros pareciam pasmos.

— Uau...

— Mentiroso.

— Isso é assustador. — Maria tapou seus ouvidos com as mãos. Eu disse que ela estava sendo boba.

— Então, de quem eram aqueles túmulos?

— Huh? — Satoru pareceu gostar do efeito que a história assustadora dele teve nos outros e foi pego desprevenido.

— Já que tinham tantos, de quem eram?

— Não sei. De qualquer forma, era um número enorme deles.

— Por que eles colocaram túmulos no pátio da escola?

— Como eu disse, é só o que eu sei.

Parecia que Satoru estava fugindo do assunto ao insistir que como ele só havia ouvido a história por outra pessoa, ele não tinha a resposta de tudo.

— .... Talvez sejam os túmulos de alunos? — Ken disse, e todo mundo ficou em silêncio.

— Alunos? De quando? Por que tantos morreram? — Maria perguntar com voz baixa.

— Não tenho certeza, mas ouvi que algumas pessoas não se graduaram e apenas desapareceram...

Os estudantes nas três escolas de nossa cidade entravam na escola ao mesmo tempo, mas por alguns motivos que explicarei depois, se graduavam em épocas diferentes. Mas dessa vez parecia que as palavras de Ken haviam tocado em um assunto que era um tabu profundo e ninguém sabia o que dizer.

Naquele momento, Shun, que estava sentado longe de nós lendo um livro, olhou para nós. Pela luz vindo da janela, eu percebi que ele possuía cílios muito longos.

— Não há nenhum túmulo.

Todos se aliviaram com suas palavras, mas então uma grande questão nos ocorreu.

— O que você quer dizer com não tem nenhum? Como você sabe? — Eu perguntei por todos nós, e Shun respondeu despreocupadamente.

— Não havia nenhum quando eu vi.

— Huh?

— Shun, você viu?

— Sério?

— Você está brincando, né?

Nós o inundamos de perguntas. Satoru pareceu desapontado em ter seu momento roubado.

— Acho que nunca mencionei isso antes. Ano passado, houve um dia que a tarefa de casa não havia sido coletada. Era um relatório de observação pessoal para a aula de ciências. A professora me pediu para levá-los quando todos estivessem entregues, então eu fui para a ala administrativa.

Todos esperamos com a respiração pausada para ele continuar, mas Shun foi em seu próprio tempo colocando um marcador de páginas no livro que estava lendo.

— Uma das salas cheia de livros tem uma janela que dá para o pátio. Havia coisas estranhas lá, mas nenhum túmulo.

Parecia que ele queria que a conversa acabasse ali. Eu ainda tinha mil perguntas para fazer, então respirei fundo.

— Não seja ridículo. — Satoru disse com uma voz instável que eu nunca havia ouvido. — O que são essas “coisas estranhas”? Explica direito.

Você que não queria explicar nada direito, eu pensei, mas queria ouvir a resposta de Shun, então não interrompi.

— Hm, como eu deveria dizer. Alinhados no fim do pátio tinham cerca de cinco armazéns feitos de tijolos, com grandes portas de madeira na frente.

Apesar da resposta dele não explicar nada, parecia ser verdade. Satoru, sem conseguir pensar em mais nenhuma pergunta, estalou a língua.

— Então, Satoru, o cara que se graduou, o que ele disse mesmo? — Eu pressionei. Ele percebeu que a situação se voltou contra ele e hesitou em responder.

— Como eu disse, eu só ouvi de outra pessoa, então eu não sei. Talvez ele tenha confundido o que viu, ou talvez naquela época realmente tivesse túmulos. — Ele se afundou ainda mais no buraco.

— Então por que os túmulos sumiram?

— Eu não faço ideia..., mas você sabia? O cara viu algo ainda mais assustador que os túmulos. — Satoru encontrou uma chance de mudar o assunto.

— O que ele viu? — Como esperado, Maria acreditou.

— Você não pode perguntar diretamente. Satoru não pensou em nada assustador ainda, então dê tempo a ele. — Eu provoquei, mas Satoru estava sério.

— Eu não estou mentindo. O cara realmente viu uma coisa. Não era exatamente no pátio, mas...

— Sim, sim...

— Então, o que ele viu? — Ken não conseguia mais resistir.

Eu achei que Satoru estaria sorrindo maliciosamente ao revelar o segredo, mas na realidade sua face se tornou monótona.

— Uma inacreditavelmente grande sombra de gato.

Tudo ficou em completo silêncio.

Nesse momento, admirei Satoru por suas habilidades de oratória. Se houvesse um trabalho para criar histórias assustadores, ele seria o primeiro a ser contratado. Mas é claro, eu não consigo pensar em nenhuma sociedade que teria um trabalho tão bobo.

— É um Gato Trapaceiro...? — Quando Maria perguntou o que todos pensavam, começamos a falar ao mesmo tempo.

— Parece que Gatos Trapaceiros aparecem muito no ensino fundamental.

— Me pergunto o porquê.

— Não é óbvio? Eles querem as crianças!

— Eles normalmente aparecem de noite no outono.

— Às vezes eles aparecem na sua casa, mas perto de meia-noite....

Estávamos simultaneamente com medo e atraídos pela escuridão. Estávamos obcecados com histórias assustadoras sobre espíritos do mal nas montanhas e rios, mas dentre todos eles, os Gatos Trapaceiros eram os que nos faziam tremer de medo. Apesar das histórias que rondavam as crianças serem bem embelezadas, todos concordavam que os Gatos Trapaceiros eram grandes como os adultos. Apesar de terem o rosto de um gato, seus membros eram anormalmente longos, e eles esquivavam-se atrás das crianças como sombras. Quando chegavam a uma área deserta, os Gatos Trapaceiros abriam sua boca em cento e oitenta graus e mordiam o pescoço das crianças, para que não pudessem fugir. Desse jeito, nenhuma gota de sangue seria derramada, então o corpo da criança nunca seria encontrado, e assim por diante.

— E aí? Onde ele viu o Gato Trapaceiro?

— Eu não sei se era um Gato Trapaceiro ou não. Tudo que ele viu foi uma sombra. — Satoru disse confiantemente, sua vergonha de antes havia sido esquecida. — Mas o lugar onde ele viu era muito perto do pátio.

— Mas onde? Não tem nenhuma forma de entrar ou sair do pátio pelo lado de fora.

— Não foi do lado de fora.

— Huh? — Eu duvidei do que Satoru estava dizendo, mas por que eu senti um arrepio correr por minha espinha?

— Foi no fim do corredor na ala administrativa e desapareceu logo em frente da porta do pátio...

Ninguém conseguia falar nada. Apesar de eu não querer admitir, Satoru conseguiu o resultado que queria. De qualquer forma, aquilo não passava de histórias inventadas contadas entre as crianças. Naquela época, eu ainda acreditava nisso.

Olhando agora, meus dias na Escola da Harmonia eram bem felizes. Mesmo que fosse só ir para a escola e encontrar meus amigos, nós não conseguíamos evitar nos divertir todos os dias.

Começando na manhã, nós tínhamos matemática, linguagem, estudos sociais, ciência e outras aulas chatas, mas os professores mantinham um olho em todos nós para se assegurar que entendíamos o material, e pacientemente explicava para aqueles que precisavam de ajuda, então ninguém ficava para trás. Ao mesmo tempo, nós também tínhamos muitas provas – uma a cada três dias, se me lembro bem. Mas a maioria não era relacionada ao que estávamos aprendendo. Eram redações curtas como “Estou triste porque...”, então não era muito estressante.

Ao invés disso, o que era mais difícil eram as tarefas de autoexpressão. Apesar de desenhos e esculturas de argila serem legais, escrever redações diárias era irritante. Mas é provavelmente por causa dessa prática que eu posso escrever esta história sem muito problema.

Depois das aulas chatas, nós passávamos a tarde toda brincando. E já que tínhamos dois dias livres nos finais de semana, ficávamos muito tempo correndo lá fora.

Quando eu entrei na escola da Harmonia, eu já tinha explorado todos os canais preguiçosamente sinuosos, observando os tetos de palha das casas, indo até Kogane. Durante o outono, a vila inteira fica coberta com espigas douradas de arroz, de onde vem seu nome. Mas a vila é na verdade mais interessante durante a primavera e o verão. Quando você espreitava os arrozais, poderia ver as aranhas d’água na superfície, as botias e os peixe-mosquitos nadando embaixo. No fundo, camarões girinos rastejavam, espalhando lama para se esconderem entre as algas. Nos canais e nos reservatórios de água das fazendas havia gigantes insetos aquáticos, escorpiões d’água, gravetos d’água, besouros e outros insetos, assim como carpas e vários peixes. As crianças mais velhas nos mostraram como usar os fios de algodão e desidratar lulas para pegar lagostas, e depois de um dia, havíamos pego um balde cheio delas.

Também havia vários pássaros em Kogane. Na primavera, os choros das cotovias rodando pelo céu ecoavam por tudo, e no verão, antes do arroz ser plantado, dezenas de íbis frequentavam os campos para caçar botias. Íbis acasalavam no inverno e construíam ninhos nas árvores próximas. As íbis filhote deixavam o ninho no outono seguinte, e mesmo que o som de seus choros não fosse considerado bonito, a vista de um bando de íbis rosa claro voando era majestosa. Outros pássaros que víamos constantemente voando eram milhafres-preto, bulbuls de orelhas marrom, pombas orientais de peito grande, pardais, corvos e mais.

E apesar de não ser um pássaro, nós ocasionalmente víamos o Minoshiro. Parecia que eles se perdiam às vezes enquanto procuravam por plantas e pequenos animais, e saíam da floresta para passear nos arrozais. Minoshiro não só melhora o solo, mas também come insetos prejudiciais, então eles são respeitados e tidos como amuletos de sorte pelas comunidades fazendeiras. Normalmente eles têm um metro de altura, mas alguns gigantes têm mais de dois metros, com inúmeras antenas agitadas. Pela forma elegante que se movem, não há dúvida de que são consideradas criaturas divinas.

Outros animais reverenciados são as cobras albinas e as cobras listradas, as duas são caçadas por Minoshiro. Como as crenças populares da época se comprometiam entre suas histórias e essa realidade é um mistério.

Quando os estudantes entravam nos graus superiores, eles iam em expedições para ver a vila de Kunugibayashi ao oeste, as dunas de areia na praia Hasaki no sul de Shirasu, e no curso superior do Rio Tone, onde as flores nasciam o ano todo. Na margem havia pássaros maçarico e garças com seus bicos vermelhos que voavam de vez em quando. Era divertido procurar por ninhos de toutinegras entre os juncos da margem do rio, e por ninhos de Kayanosuzukuri nos picos de montanhas em campos abertos de miscanto. Em particular, os falsos ovos deixados pelas Kayanosuzukuris eram perfeitos para pregar peças nas pessoas.

Mas não importava quantos animais víamos, já que estávamos dentro da Barreira Sagrada, não era natureza de verdade; era mais como um jardim em miniatura. Basicamente, no passado, os animais que tínhamos em um zoológico eram provavelmente os mesmos que os do lado de fora. Os elefantes, leões, girafas e outros animais que víamos são na verdade mutações criadas por nosso cantus – falsos elefantes, imitações de leões, falsas girafas – então quando ocorrer de um conseguir fugir de seus recintos, não haveria possibilidade de visitantes se machucarem.

O ambiente dentro da barreira é completamente alterado para ser seguro aos humanos. O fato se tornou óbvio depois, mas antes disso, eu nunca imaginei o porquê podíamos correr à vontade na natureza sem sermos picados por cobras venenosas ou por insetos. Dentro da barreira não havia cobras venenosas como víboras ou cobras de trama aneladas. As únicas cobras que tínhamos eram inofensivas, como cobras japonesas que comem ratos, cobras de dentes estranhos orientais, cobras japonesas da floresta, cobras quilha asiáticas e cobras rosa.

Além disso, os vários ciprestes crescendo na floresta secretavam, em um nível excessivo, uma substância malcheirosa que matava esporos de mofo, carrapatos, germes e outras coisas nocivas a nós.

Falando de minha infância, ainda preciso mencionar as celebrações anuais e rituais que tínhamos. Passados de geração para geração, esses eventos sazonais criavam um tipo de ritmo em nossas vidas.

Lembrando agora de cabeça, na primavera nós tínhamos um ritual para afastar espíritos do mal, um festival de reza para o sucesso da colheita, e um festival para afastar doenças infecciosas. No verão, há o festival de verão (festival de monstros), festival do fogo, e uma festa de lanternas. No outono há um festival no primeiro de agosto, e uma cerimônia oferecendo aos deuses arroz recém colhido. E os eventos que me lembram do inverno são o festival de neve, o festival de ano novo e (outro festival no final do festival de ano novo).

Mas o que está cravado em minha mente é o ritual usado para afastar espíritos do mal.

Supostamente ele também pode ser chamado de Festival de Perseguir Demônios (Yarai), mas se isso é verdade ou não é incerto. É um de nossos festivais mais antigos, com mais de dois mil anos de história.

Na manhã do festival, nós, as crianças, nos reunimos em um quadrado aberto. Usamos “máscaras de pureza” feitas com argila úmida e coberta com giz em pó e fizemos o papel de “Shinshi” no ritual.

Desde que eu era criança, me assustava com essa cerimônia porque duas das máscaras usadas eram excepcionalmente aterrorizantes.

As duas máscaras representavam Espíritos Malignos e Demônios do Carma. O rosto do Espírito Maligno tinha um sorriso sinistro. Depois, quando o banner de informações sobre a cerimônia foi levantado, eu tentei encontrar a história delas, mas a informação era incerta. O que eu achei era que a máscara do Espírito Maligno lembrava vagamente a máscara de cobra de peças Noh antigas. É o final de três estágios de um humano se tornando um demônio, que vai de bestialização para hannya e depois para serpente.

Por outro lado, o rosto do Demônio do Carma era um de medo e angústia, apesar de que suas características eram confusas e tortas, e às vezes nem parecia humano.

O ritual que faz parte do âmago do festival funciona mais ou menos assim. Areia branca é espalhada pelo quadrado com braseiros acesos no canto leste e oeste, enquanto vinte ou trinta shinshis marcham ao redor das flamas cantando “Demônios, vão-se embora. Demônios, vão-se embora.” em um ritmo peculiar.

Então o exorcista aparecia vestido com uma roupa tradicional e carregava uma grande lança em suas mãos. Mas a primeira coisa que todos notavam era sua máscara dourada com quatro olhos.

O exorcista se junta aos shinshi cantando e circulando pelo fogo, e espalha feijões em todas as direções para afastar calamidades e má sorte. Ele também os jogava para os espectadores e as pessoas usavam suas mãos em forma de concha para pegá-los.

Daqui em diante, a parte aterrorizante começa. O exorcista se vira para os shinshi sem aviso e joga o resto de seus feijões neles.

— Impuridade está entre nós! — Ele grita e os shinshi repetem. No sinal, dois dos shinshi rasgam suas máscaras de pureza, se revelando como um Espírito Maligno e um Demônio do Carma.

Como um shinshi, essa cena era assustadora o suficiente para tirar meu fôlego. Uma vez, o shinshi ao meu lado subitamente se transformou em um Espírito Maligno e o resto dos shinshi se espalharam como baratas em terror, convencidos de que estavam vendo demônios de verdade.

— Expulse impureza! — O exorcista grita enquanto leva os dois demônios com sua lança. Os demônios são colocados em uma demonstração de resistência, mas quando todos se juntam nos gritos, eles correm e o ritual acaba.

Eu ainda me lembro da visão do rosto de Satoru quando ele tirou sua máscara, sentindo calafrios.

— Você está pálido como um fantasma. — Eu disse, e os lábios sem cor de Satoru tremeram.

— E daí? Você também está.

O que vimos nos olhos um do outro foi nossos próprios medos ocultos.

Os olhos de Satoru se arregalaram e empurrou seu queixo contra algo em minhas costas. Eu me virei e vi o exorcista voltando para o quadrado, desabotoando sua máscara.

O exorcista normalmente é feito por quem tem o cantus mais poderoso de todos nós. E, até onde eu dei, Shisei Kaburagi nunca deixou ninguém tirar esse posto dele.

Shisei Kaburagi nos sentiu o encarando e sorriu levemente. O estranho era o fato de que mesmo depois de tirar a máscara de exorcista, ele ainda estava usando outra na parte de cima de seu rosto. É dito que ninguém nunca viu seu rosto verdadeiro. Seu nariz e boca pareciam simples, mas os óculos escuros escondendo seus olhos dava a ele um ar intimidador e sinistro.

— Foi assustador? — Ele perguntou em uma voz ressonante e baixa. Satoru concordou com sua cabeça com um olhar pasmo em sua face. Os olhos de Shisei Kaburagi continuaram em mim pelo que parecia um tempo absurdamente longo.

— Você se interessa por muitas coisas, não é?

Eu travei, sem saber como responder.

— Você terá sorte ou azar? — Shisei Kaburagi foi embora com a sombra de seu sorriso no rosto.

Por algum tempo ficamos lá parados como se estivéssemos encantados. Então Satoru suspirou e murmurou “Aquele cara provavelmente tem o poder e partir a Terra ao meio se ele se concentrar bem...”

Apesar de eu não acreditar nas besteiras de Satoru, o que ele disse continuou em minha cabeça por um longo tempo.


Épocas felizes nunca permanecem por muito tempo.

Minha infância não era exceção, mas o irônico é que naquela época eu me preocupava que aqueles momentos felizes eram longos demais.

Como eu disse antes, todos se graduam da escola da Harmonia em tempos diferentes. O primeiro a se graduar de nossa classe foi o Shun. Um garoto com notas melhores que as de qualquer outro, e com a sabedoria e maturidade de um adulto, ele repentinamente desapareceu da nossa classe um dia. Nosso professor, Sanada, orgulhosamente anunciou sua graduação para o resto da sala.

Depois disso, meu único desejo era me formar logo para que pudesse estar na mesma escola que Shun. Entretanto, mesmo que meus colegas de sala começassem a ir embora um por um, nunca foi a minha vez. Quando Maria se graduou, eu fui deixada para trás novamente. Não importava o quanto eu tentasse explicar, as outras pessoas não conseguiam entender como eu me sentia.

Quando as flores de cerejeira começaram a murchar, havia apenas cinco dos vinte e cinco estudantes ainda na classe. Satoru e eu estávamos entre eles. Mesmo Satoru que era normalmente turbulento parecia deprimido. Toda manhã depois de nos assegurávamos de que ninguém mais tinha se formado, suspirávamos em alívio e continuávamos nosso dia. Se possível, gostaríamos de nos formar ao mesmo tempo, mas se não, secretamente desejávamos ser os primeiros.

Mas meu desejo foi completamente destruído. Ao entrar em Maio, Satoru, que era minha última esperança, finalmente se graduou. Mais dois o seguiram quase imediatamente, deixando apenas dois de nós. Apesar de parecer estranho, eu não consigo lembrar o nome da pessoa não importando o quanto eu tente. Apesar de ele ter sido o mais devagar de nossa classe e um estudante completamente normal, eu não acho que esse seja o motivo de não conseguir lembrar. Acho que é porque eu inconscientemente reprimi minhas memórias dele.

Durante aquela época, eu me isolava em meu quarto todos os dias após a escola e não conversava com ninguém. Até meus pais ficaram preocupados com meu comportamento.

— Não há por que ser impaciente, Saki. — Minha mãe disse uma noite, acariciando meu cabelo. — Não importa se você se formar cedo. Eu sei que é solitário porque todos se foram, mas você vai se reencontrar com eles novamente logo.

— Eu não estou... sozinha nem nada assim. — Eu disse, me jogando na cama com o rosto para baixo.

— Sabe, se graduar cedo não é nada especial. Não tem nada a ver com a força ou a qualidade de seu cantus. Eu já te contei? Que sei pai e eu não nos graduamos tão cedo também.

— Mas vocês não foram os últimos da classe também, certo?

— Não, mas...

— Eu não quero ser expulsa.

— Não diga isso! — Ela disse em uma voz severa incomum. — De onde você ouviu isso?

Eu afundei meu rosto no travesseiro e continuei em silêncio.

— Os deuses decidem quando você deve se graduar, então tudo que você deve fazer é esperar. Você vai conseguir se juntar aos outros rapidinho.

— E se...

— Hmm?

— E se eu não conseguir me graduar?

Por um mísero segundo minha mãe estava sem palavras, mas então ela sorriu brilhantemente e disse “Você estava preocupada com isso, bobinha? Vai ficar tudo bem. Você definitivamente vai se graduar, é só questão de tempo.”

— Mas há pessoas que não conseguem, né?

— Sim, mas é uma chance de menos de um em um milhão.

Eu sentei e nossos olhos se encontraram. Por algum motivo, minha mãe parecia um pouco abalada.

— É verdade que se você não se graduar, um Gato Trapaceiro vai te pegar?

— Não seja boba, Gatos Trapaceiros não existem nesse mundo. Você será adulta logo; se continuar falando coisas como essa, as pessoas vão rir de você.

— Mas eu vi um.

Naquele instante, uma sombra de medo inconfundível voou por sua face.

— Do que você está falando? Deve estar imaginando coisas.

— Eu vi. — Repeti, tentando conseguir aquela reação novamente para conseguir confirmar o que era. Eu não estava mentindo. Eu realmente achava que havia visto um uma vez. Mas aconteceu tão rápido que até eu acreditava que deveria ter imaginado. — Foi antes de eu vir para casa ontem, durante o pôr do sol. Estava em uma intercessão e vi algo que parecia um Gato Trapaceiro a cruzando. Mas ele desapareceu instantaneamente.

Minha mãe suspirou.

— Você conhece o ditado “ver fantasmas no miscanto”? Se continuar pensando em coisas assustadoras, tudo que verá vai ser assustador. O que você viu era só um gato, ou uma fuinha. É difícil ver as coisas claramente quando está ficando escuro. — Minha mãe estava agindo normalmente como antes. Quando ela disse boa noite e apagou as luzes, eu caí no sono facilmente.

Mas quando abri meus olhos de novo no meio da noite, todo o sentimento de paz e segurança havia desaparecido.

Meu coração estava batendo como um tambor, minhas mãos e pés estavam gelados e meu corpo inteiro estava encharcado em suor. Suor bem desagradável.

Algo sinistro estava arranhando o lambrim entre o teto e a cobertura. Era quase inaudível, mas parecia como se painéis estivessem sendo arranhados com garras afiadas.

Será que um Gato Trapaceiro veio me pegar?

Eu não consegui me mover, como se estivesse congelada por uma maldição.

Me debatendo para conseguir o controle novamente, eu vagarosamente me libertei do feitiço. Eu escapei da cama e escorreguei a porta para abri-la silenciosamente. A luz do luar era derramada pelo corredor através das janelas. Apesar de ser primavera, os pisos de madeira embaixo dos meus pés estavam frios.

Só mais um pouco, quase lá. O quarto dos meus pais estava bem ali no canto. Eu suspirei em alívio quando eu vi uma luz escapando por debaixo da porta. Quando eu fui abri-la, eu os ouvi conversando. A voz de minha mãe, cheia de preocupação de forma que nunca havia ouvido antes. Minha mão parou no ar.

— Estou preocupada. Nesse ritmo, ela pode...

— Se continuar se preocupando, será só uma má influência para Saki. — Meu pai disse em uma voz abatida.

— Mas se isso continuar... O Conselho de Educação começou a se mover?

— Eu não sei.

— É difícil colocar qualquer influência neles pela biblioteca. Mas você tem privilégios, pode sancionar, então não dá fazer nada sobre isso?

— O conselho é independente. Eu não tenho poder para investigá-los, muito menos da posição de pai da Saki.

— Eu não quero perder outra criança!

— Está falando muito alto.

— Mas ela disse que viu um Gato Trapaceiro!

— Ela provavelmente só imaginou.

— E se for real? O que faremos?

Eu dei um passo para trás. Apesar do conteúdo da conversa estar além de minhas capacidades, eu entendi claramente que havia ouvido algo que não deveria.

Tão silenciosamente quanto eu havia ido para lá, voltei para meu quarto. Havia uma mariposa-imperador azul do tamanho de minha mão sentada na janela. Parecia como uma mensagem de maus presságios enviada do submundo. Apesar de eu não estar com frio, meu corpo não parava de tremer.

O que está havendo?

Pela primeira vez na minha vida eu me senti vulnerável e sozinha, sem ninguém para me ajudar.

O que está acontecendo comigo?

Um rangido desagradável estava vindo do teto.

Algo estava se aproximando...

Eu senti algo tão grande quanto o próprio medo, chegando mais e mais perto.

Ah, está quase aqui.

A mariposa voou e desapareceu na escuridão.

No próximo instante, a moldura da janela começou a tremer e chacoalhar, mesmo que não houvesse vento. A tremedeira ficou mais e mais forte, como se algo do lado de fora estivesse tentando tirar a janela da moldura.

A porta abriu sozinha e se fechou novamente com um som alto.

Eu engoli em seco. Estava difícil de respirar. Eu tentei levar ar até o fundo de meus pulmões. Mas não consegui. Está vindo. Vindo. Vindo...

De repente, tudo no quarto começou a se debater violentamente. A cadeira e a mesa começaram a resistir como um cavalo selvagem, canetas e lápis voaram pelo quarto e furaram através da porta. A cama flutuou devagar em direção ao teto.

Eu gritei.

Sons de passos apressados vieram do corredor. Meus pais estavam gritando meu nome. A porta abriu saltando e eles invadiram o quarto.

— Saki, está tudo bem agora! — Minha mãe me envolveu em um abraço apertado.

— O que é isso? — Eu gritei.

— Está tudo bem, não se preocupe. É um espírito de bênção! Finalmente veio até você.”

— Isso?

O monstro invisível destruindo meu quarto tinha se acalmado lentamente depois de meus pais chegarem.

— Isso significa que você é uma adulta agora, Saki. — Meu pai disse, com o alívio sendo mostrado em seu sorriso.

— Então, eu...?

— Você se gradua da Escola da Harmonia hoje. Amanhã, vai entrar na Academia do Sábio.

O livro que estava flutuando preguiçosamente pelo ar caiu morto no chão. Minha cama saltou e caiu com um baque, como se o fio a segurando tivesse sido cortado.

Minha mãe me abraçou tão forte que doeu. “Graças a deus! Não há nada com o que se preocupar mais!”

Enquanto as lágrimas mornas caíam na minha nuca, uma sensação cheia de alívio me banhou e eu fechei os olhos.

Mas o choro dolorido de minha mãe com “Eu não quero perder outra criança!” ecoava no fundo de minha mente.

Capítulo 03

Capítulo 03

Eu recentemente havia aprendido sobre um fenômeno chamado poltergeist que era escrito em literatura anciã.

Em minhas mãos, estava segurando alguns livros resgatados pela biblioteca em que minha mãe trabalhava. Estampado em uma das capas havia o caractere 訞 (encantador). Os de nós na Escola da Harmonia e da Academia do Sábio tem permissão de ler livros de classe um estampados com “recomendado”, “excelente” e “bom”. Mas livros de classe quatro como esse são indisponíveis para a maioria dos cidadãos. Por um desvio do destino, ele escapou da biblioteca por estar enterrado no fundo de um armazém subterrâneo.

De acordo com o livro, durante um período no passado onde nem todo mundo possuía cantus, frequentemente havia relatos de fantasmas batendo nas paredes, talheres dançando no ar, móveis se movendo sozinhos, ruídos em casas vazias, e outros fenômenos esquisitos.

Mas na maioria dos relatos, sempre havia alguma criança na casa. Uma análise disso é que a maioria das crianças estavam passando por muitas batalhas emocionais na época, e a energia sexual delas é inconscientemente manifestada como cantus.

Em outras palavras, poltergeists são na verdade eventos de telecinese espontânea recorrente (TCER), e é obvio que o Espírito da Bênção que me visitou não era um espírito, mas um caso de TCER.


Muitas coisas aconteceram nos três dias que seguiram os eventos daquela noite. Representantes do Conselho de Educação vieram para nossa casa logo após meus pais notificarem que eu havia adquirido meu cantus. Havia uma mulher velha em roupões brancos, uma jovem que parecia uma professora, e um homem de idade no que parecia um manto de monge. A velha no meio não perdeu tempo em me questionar sobre minha saúde e condição emocional em detalhes. Eu pensei que eu seria admitida na Academia do Sábio depois disso, mas foi apenas o começo.

Eu fui levada de casa por algum tempo. A velha disse que era parte do procedimento para entrar na Academia do Sábio e que não devia me preocupar. Meus pais se despediram com um abraço e um sorriso, e não mostraram nenhuma apreensão que podiam ter.

Eu embarquei em uma casa flutuante sem janelas e me foi dado uma tigela de algo que disseram ser medicamentos contra enjoo. Era doce, como açúcar mascavo, mas o gosto no fim era incrivelmente amargo. Minha mente ficou branca logo após beber.

Eu pude sentir o barco navegando em uma boa velocidade, mas não tinha ideia da direção que ele ia. Pela forma que as ondas batiam e pelo som do vente, eu imaginei que o caminho em que viajávamos não era muito largo. Talvez estivéssemos na corrente principal do rio Tone. Eu queria perguntar, mas pensei que provavelmente era melhor não falar nada mais do que o necessário. A jovem que me acompanhava me questionava incessantemente o tempo inteiro. Não havia um tema para o que ela estava perguntando, e não pareceu que ela estava escrevendo minhas respostas.

Três horas depois, depois de várias curvas e voltas, o barco parou. O porto e a área ao redor estavam bem cobertos, não dando nenhuma visão do lado de fora.

E assim como eu esperava, enquanto subíamos as escadas para um prédio que parecia um templo, nenhuma parte do mundo de fora era visível.

Um jovem monge de manto preto e uma cabeça recentemente raspada foi nos cumprimentar. O trio do comitê apareceu também. Eu fui levada para um quarto vazio com um estilo tradicional. Nas paredes havia um pergaminho com caligrafia fresca. Eu não consegui ler o que estava escrito, mas parecia similar ao que estava pendurado na escola da Harmonia.

Eu me ajoelhei no tatame, mas pelas instruções do monge, mudei para me sentar na posição de lotus, com a ponta dos meus pés em minhas coxas. Ele parecia querer que eu meditasse e me reorganizasse. Já que tínhamos que meditar todos os dias na escola da Harmonia, eu estava acostumada, mas secretamente desejava que estivesse usando calças mais confortáveis.

Eu respirei fundo pelo meu estômago e tentei acalmar minha mente o mais rápido possível. Mas eu não precisava me apressar, porque acabei esperando por duas ou três horas. Durante esse tempo, eu percebi que o sol havia se posto. O Tempo pareceu passar em uma velocidade diferente do que o normal. Apenas metade de mim estava tentando me acalmar. Por algum motivo, não conseguia focar em apenas uma coisa.

Enquanto o quarto escurecia, eu comecei a me sentir um pouco inquieta. No início não conseguia descobrir por que, então percebi que mesmo que fosse perto do pôr do sol, eu não podia ouvir “Going Home”. Não importava onde estivesse em Kamisu 66, você sempre ouviria a melodia. Se eu estava longe o suficiente a ponto de não a ouvir, então significava que eu estava fora da Barreira Sagrada.

Isso era mesmo possível?

A Natureza chamou. Eu perguntei em voz alta se alguém estava por perto, mas não houve resposta. Eu não tinha opção a não ser ir para o lado de fora. O corredor tinha pisos de rouxinol que piava com cada passo. Felizmente, o banheiro estava logo no fim dele.

Quando voltei, uma lâmpada estava acesa e um monge encurvado com um bigode branco estava sentado no quarto. Mesmo que eu tivesse doze anos na época, eu era mais alta que ele. Ele parecia ancião. Estava vestindo um manto muito remendado e mesmo sem dizer nada emitia um ar de afabilidade. Eu me ajoelhei para ele.

— Como você está? Está com fome? — Ele perguntou, sorrindo.

— Sim, um pouco.

— Já que veio até aqui, eu gostaria de te indicar nossa cozinha vegetariana, mas infelizmente terá que ficar em jejum até amanhã de manhã. Acha que consegue?

Eu estava desapontada, mas concordei mesmo assim.

— Por sinal, eu sou o instrutor desse templo destruído. Meu nome é Mushin.

Eu me endireitei em reflexo. Não havia ninguém em Kamisu 66 que não conhecesse o nome do sagrado sacerdote. Assim como Shisei Kaburagi que era reverenciado pelo poder de seu cantus, Mushin era amado e respeitado por sua personalidade.

— Eu sou... Saki Watanabe.

— Eu conheço seus pais muito bem. — Ele disse, concordando. — Eram crianças extraordinárias, e eu esperava que fossem se tornar pessoas em que a cidade pudesse depender. E se tornaram, assim como pensei.

Eu não sabia o que dizer, mas não era desagradável ouvir meus pais sendo elogiados.

— Mas seu pai realmente gostava de pregas peças. Ele costumava jogar ovos de Kayanosuzukuri na estátua de bronze todos os dias. O cheiro era terrível e não sabíamos como nos livrar dele. Era minha estátua, por sinal. Ah, naquela época, eu era o diretor da escola da Harmonia.

— Ah, sério? — Era minha primeira vez ouvindo que o sacerdote chefe Mushin tinha sido diretor. Eu também achava difícil de imaginar que a personalidade do meu pai era a mesma de Satoru.

— Saki, você entrará na Academia do Sábio logo e se tornará uma adulta. Mas antes disso, você deve se isolar neste templo esta noite.

— Hm, onde fica esse templo? — Eu sabia que era rude interrompê-lo, mas não pude segurar mais minha curiosidade.

— Esse é o Templo da Pureza. Normalmente eu presido o Templo da Terra Pura em Kayawa, mas eu venho aqui para queimar palitos de cedro para cerimônias de amadurecimento.

— Por acaso não estamos do lado de fora da Barreira Sagrada?

O sacerdote chefe Mushin pareceu fracamente surpreso. “Sim. É a primeira vez que você esteve fora da barreira desde que nasceu. Mas não se preocupe, há uma barreira que é tão poderosa quando a Barreira Sagrada ao redor de toda essa área.”

— Entendo.

A voz calma do sacerdote chefe Mushin aliviou minha inquietude.

— Bem, é hora de se preparar. Acender os palitos de cedro em si não é muito especial; é só uma cerimônia normal. Mas antes disso teremos um pequeno sermão. Não é nada muito formal, então relaxe. E pode deixá-la um pouco sonolenta, então tudo bem se acabar dormindo.

— Mas isso...

— Não, não, tudo bem, de verdade. Insones vinham para meu templo para esse mesmo motivo, apesar de ser há um longo tempo. De qualquer forma, passar uma noite inteira sem dormir, mas também não fazer mais nada é uma perda de tempo, em minha opinião. Uma vez, precisei dar um sermão, mas ninguém queria ouvir, então encontrei um monte de insones e os juntei. Dentro dos primeiros dez minutos, todos estavam dormindo profundamente.

O discurso do sacerdote chefe Mushin não era devagar e estagnado como o da maior parte das pessoas de sua idade. Ele tinha uma habilidade de encantar sua audiência. Eu ria e conversava com ele facilmente.

Falando no sermão, não era tão chato a ponto de me fazer cair no sono, mas não particularmente revigorante também. Era sobre a Regra de Ouro. Faça aos outros o que gostaria que fizessem para você. Basicamente, se colocar no lugar da outra pessoa e pensar em como se sentiria.

— ... Isso parece simples, mas é difícil de realmente entender. Veja este exemplo. Você e uma amiga estão escalando uma montanha e sentem fome pelo caminho. Seu amigo levou um bolinho de arroz e começa a comê-lo, mas você não tem nada. Você pergunta se ela pode dividi-lo e ela diz “não, não é necessário”.

— Por quê?

— Poque eu posso suportar a sua fome.

Eu estava chocada. Mesmo como uma alegoria, era muito sem sentido.

— Não acho que exista alguém assim.

— Claro que não, mas e se existisse? O que pensaria? Que parte do que disseram foi errado?

— Que parte... — Eu estava perdida. — Eu acho que violaram o Código de Ética.

O sacerdote chefe Mushin balançou a cabeça, sorrindo um pouco. “Algo tão óbvio provavelmente não está no Código de Ética.”

É claro, se tivessem escrito regra por regra assim, o Código de Ética teria tantos volumes que iria lotar a biblioteca inteira indo até a Barreira Sagrada.

— A resposta para isso não é algo racional; é emocional. — O sacerdote chefe Mushin bateu em seu peito.

— Meu coração?

— Exatamente. Você consegue sentir a dor de sua amiga em seu próprio coração? Se pode, você iria querer ajudar de alguma forma, certo? Essa é a coisa mais importante para os humanos.

Eu concordei.

— Você consegue sentir a dor do outro?

— Sim.

— Não hipoteticamente. Você realmente consegue pegar a dor do outro e perceber como sua própria?

— Sim, eu posso. — Eu confirmei confiantemente. Eu pensei que a entrevista oral tinha acabado, mas a reação do sacerdote chefe Mushin foi diferente do que eu esperava.

— Então por que não tentamos?

Enquanto eu estava imaginando o que ele queria dizer com “tentamos”, o sacerdote chefe Mushin tirou uma faca de seu manto e desembainhou para revelar uma lâmina embotada. Eu estava chocada.

— O experimento é, você consegue sentir minha dor quando é apresentada à você assim? — Sem aviso, ele se esfaqueou na perna com a faca.

Eu encarei, estupefata.

— Com treinamento o suficiente, podemos aguentar qualquer dor infringida em nossos corpos. Além disso, na minha idade, eu não sangro tanto mais... — Ele murmurou desarticulado.

— Por favor, pare! — Eu gritei, finalmente percebendo o que estava acontecendo. Minha voz falhou e meu coração bateu loucamente em meu peito.

— Isso é para você. Consegue realmente, de verdade, sentir a minha dor? Se pode, então irei parar.

— Eu consigo sentir, então pare!

— Não, você não consegue. Ainda está apenas imaginando. A dor verdadeira vem do coração.

— Isso... — O que eu deveria fazer? Minhas pernas não se mexiam.

— Tudo bem? Até que você sinta a dor, eu preciso continuar fazendo isso. É o que devo fazer para guiá-la.

— M-Mas... Como eu posso...

— Não imagine. Assuma. Você. Fez. Isso. Para. Mim. — A voz do sacerdote chefe Mushin estava cheia de dor. — Você entende? Você. Está. Me. Fazendo. Sofrer.

Eu pensei que meu coração iria parar. O que diabos eu deveria fazer para salvá-lo?

— Por favor, me ajude. — Ele disse em uma voz baixa e rouca. — Pare com isso, me ajude.

Como eu deveria explicar a atmosfera naquela hora? Era completamente irracional, mas eu gradualmente acreditei que eu realmente estava torturando o sacerdote chefe. Lágrimas caíram incessantemente de meus olhos.

O sacerdote chefe Mushin gemia de dor. A mão segurando a faca em sua perna estava tendo espasmos rápidos.

Então algo inacreditável aconteceu. Meu corpo congelou e eu fiquei impossibilitada de me mover, meu corpo de visão se estreitou e havia um peso enorme em meu peito, me deixando sem ar.

— Por favor. Não. Me. Mate.

Aquelas palavras ativaram algo. Uma dor aguda e afiada começou do lado esquerdo de meu peito e percorreu todo o caminho para o topo de minha cabeça.

Eu perdi meu equilíbrio e caí de lado no tatame.

Meu coração. Minha respiração, eu não conseguia respirar. Minha boca abria e fechava como um peite fora d ‘água.

Eu vi o sacerdote chefe Mushin me analisando como se estivesse observando um espécime em laboratório.

— Por favor se recomponha. — A voz calma dele veio de longe. — Saki, está tudo bem. Nada aconteceu comigo.

Em meus olhos foscos, eu o vi se levantar como se nada houvesse acontecido. Não parecia ter uma ferida em lugar nenhum.

— Olhe com cuidado. Não possuo nenhum machucado. A faca é falsa. Foi feita para não furar nada.

Quando ele empurrou a lâmina, ela se retraiu na bainha.

Eu continuei deitada no chão por algum tempo, extremamente confusa.

A dor foi embora e eu consegui me mover novamente.

Eu levantei, secretamente irritada com a pegadinha. Antes que eu pudesse abrir minha boca para reclamar, as mudanças em meu corpo me pegaram de surpresa.

— Chocante, não é? Mas com isso, você passou no teste final. — O rosto do sacerdote chefe Mushin retornou a sua expressão benevolente de sempre. — Se consegue sentir a dor do outro como sua, não há com o que se preocupar. É hora de garantir seu próprio mantra.

Meu corpo estava normal de novo, mas eu ainda não conseguia fazer nada a não ser concordar.

— Mas, por favor, não esqueça da dor que sentiu. Lembre-se dela de vez em quando e transforme-a em parte de si. — As palavras dele foram fundo em meu coração. — Isso é o que torna humanos diferentes de bestas.

O monge que estava rezando jogou algumas coisas em formato de pílula e derramou óleo perfumado no altar, fazendo as chamas aumentarem.

O som dos monges cantando sutras atrás de mim soavam como o eco de milhares de grilos.

Após me lavar, eu coloquei roupas brancas como as usadas para vestir cadáveres. Eu sentei atrás dos monges que rezavam e coloquei minhas mãos juntas.

O ritual continuou sem fim enquanto minha fadiga aumentava. Deveria ser quase de manhã. Pensamentos bagunçados levitavam e desapareciam como bolhas. Eu não conseguia mais pensar direito.

(Toda vez que algo era jogado nas chamas, era como se meus pecados e preocupações fossem queimados, mas o ritual estava levando tanto tempo que eu pensei que deveria ser uma pessoa com pecados e preocupações particularmente profundos.)

— Agora, seu coração e corpo foram purificados o suficiente. Daqui, deixe o último de seus desejos mundanos ser queimado. — O sacerdote chefe Mushin disse atrás de mim.

Eu me curvei, finalmente estava sendo liberada.

— Olhe para as chamas. — A voz que ouvi da escuridão parecia que vinha dos céus. — Olhe para as chamas.

Eu fixei meu olhar no fogo dançante em cima do altar.

— Tente controlá-las.

— Eu não consigo. — Desde que o Espírito da Bênção veio, eu não tentei nenhuma vez usar meu cantus.

— Está tudo bem, você consegue. Faça as chamas balançarem.

Eu encarei o fogo.

— Para a esquerda, para a direita. De um lado para o outro... um lado para o outro.

Era difícil me concentrar, mas após algum tempo, meu foco de repente se afiou e as chamas aumentaram. A chama interior ficou mais e mais brilhante e seu coração quase transparente. As beiradas estalavam.

Mova. Mova.

Não, não é a chama, eu percebi subitamente. Fogo é feito de várias partículas brilhantes, mas são muito espalhadas para ter alguma substância.

Eu tenho que mover o ar.

Percebi que tinha que mover o calor ao redor das chamas. A corrente cintilante de ar quente.

Eu aumentei minha concentração.

Flua. Flua... mais rápido.

O movimento do calor aumentou abruptamente.

No próximo instante o fogo estava balançando de um lado para o outro como se fosse soprado pelo profundo vento.

Eu consegui.

Foi um momento brilhante de sucesso.

Eu não acreditava que tinha conseguido. Que eu conseguia mover algo com minha própria vontade, sem usar as mãos.

Eu respirei fundo e novamente fui às chamas com minha consciência.

— É o suficiente. Pare. — Uma voz severa surgiu.

Minha concentração colapsou como uma casa de cartas, a imagem que tinha em minha mente foi engolida por trevas.

— Seu último desejo é seu cantus.

Eu não consegui entender o que aquilo significava na hora.

— Jogue fora todos os seus desejos. Para serem iluminados, eles devem purgados pelas chamas.

Eu não pude acreditar. Eu havia acabado de conseguir meu cantus. Por que eu deveria desistir dele?

— Você deve retornar aos deuses o poder que lhe foi dado pelo céu. De agora em diante, seu cantus será selado neste emblema humano.

Desobediência não era permitida. Uma boneca feita de dois pedaços de papel dobrado foi colocada em minha frente. Na cabeça e no torso havia caracteres misteriosos que parecia em sânscrito.

— Controle o emblema e faça-o levantar.

Esta tarefa era consideravelmente mais difícil do que a última. Além disso, meu coração estava conflituoso demais para eu me concentrar.

Mas eventualmente, o emblema esvoaçou e levantou.

Cabeça de papel. Corpo de papel. Membros de papel.

Uma figura humana inconfundível.

Eu senti meu próprio corpo se fundir com o emblema de papel. Eu mandei força para suas pernas, balançando como um boneco daruma.

A figura de papel se levantou gentilmente.

Mais uma vez, sentimentos de felicidade e poder me inundavam.

— Saki Watanabe, seu cantus está selado! — A voz dele ecoou no templo, destroçando a imagem brilhante que tinha em minha mente.

Seis longas agulhas assobiaram pelo ar, furando a cabeça do emblema, seu corpo, braços e pernas.

— Todos os seus desejos foram queimados. Deixe as cinzas retornarem para a vasta e selvagem terra.

O monge rezando jogou o emblema no fogo.

O fogo queimou como uma explosão, quase alcançando o teto.

— Seu cantus foi erradicado.

Petrificada, eu só podia observar os eventos se desenrolando em minha frente.

— Olhe para as chamas. — O sacerdote chefe Mushin me comandou. — Você não pode mais controlá-las. Tente. — Sua voz era apática.

Eu olhei para o fogo, mas dessa vez, não conseguia ver nada. Não importava o quanto eu tentasse, nada mudava.

Eu nunca poderia adquirir aquele sentimento de poder novamente? Lágrimas escorreram pelas minhas bochechas.

— Em sua devoção, você abandonou seu cantus. — Sua voz de repente foi carinhosa e gentil novamente. — Pela compaixão de Buda, você receberá um mantra puro, um novo espírito e seu cantus, mais uma vez.

Ele bateu em meus dois ombros com uma vara zen. Eu inclinei minha cabeça, e o som do cântico aumentou.

O sacerdote chefe Mushin se aproximou para que eu pudesse ouvir e sussurrou meu novo mantra.

Tendo escrito até aqui, estou extremamente perplexa.

Não importa o quanto eu tente, não consigo escrever meu mantra.

Mesmo agora, nossa sociedade coloca muita importância nos significados de nossos mantras. São palavras oferecidas para os deuses que são a chave para ativar nosso cantus. Somos avisados para nunca as usar em vão, para que o poder não se perca.

Por outro lado, essas são só palavras para o feitiço – sons sem significado. Então revelá-las aqui não deve ser um problema.

Eu quero entender o raciocínio por trás disso. Nas partes mais fundas de meu inconsciente é uma defesa natural contra expor meu mantra. Mesmo agora, eu posso sentir minha mão segurando a caneta sendo restrita toda vez que tento o escrever.

Então, para aqueles que querem saber o que um mantra é, eu escrevi um exemplo abaixo.


Namo ākāśagarbhaya oṃ ārya kamari mauli svāhā.


Aliás, esse é o mantra de Akasagarbha bodhisattva dado ao Satoru.

O resto de minha iniciação se arrastou por um longo tempo, então não irei escrevê-la inteira. Quando havia finalmente acabado, o céu estava brilhando no leste e todos estavam exaustos.

Eu dormi como uma pedra por um dia inteiro após isso. Quando acordei, passei o dia trabalhando com os sacerdotes estudantes, e no dia seguinte deixaram eu ir para casa.

O sacerdote chefe Mushin e os outros monges no Templo da Pureza me desejaram boa sorte e desejaram adeus embaixo das flores de cerejeira. Eu entrei no barco sem janelas mais uma vez e viajei de volta para a vila – a jornada apenas levou duas horas dessa vez.

Meus pais me abraçaram fortemente por um longo período. Houve uma celebração naquela noite; a mesa estava repleta com todos os meus pratos favoritos. Havia bolinhos de inhame aquecidos no forno, filés crus de linguado com proteína alterada, uma saborosa sopa de caranguejo tigre...

Com isso, minha longa infância havia chegado ao fim. No dia seguinte, eu iniciaria uma nova vida.

A Academia do Sábio, assim como a Escola da Harmonia, fica em Kayawa, mas muito mais ao norte, perto de Matsukaze. Meu professor da escola da Harmonia me acompanhou até a construção de pedra, mas me disse para entrar na classe sozinha. Minha boca estava seca pela ansiedade.

Imediatamente na direita da porta de entrada estava o pódio. Na parede a minha frente estava pendurado o lema da escola. Na minha esquerda havia assentos de estilo teatral, onde mais ou menos trinta estudantes estavam sentados quietos.

Sr. Endou me levou até o pódio e senti minhas pernas tremendo ao me aproximar. Nunca eu tinha sido o foco de tantas pessoas; me senti nua e indefesa.

Eu não tive coragem de olhar para a classe enquanto estava no pódio. Eu tentei bisbilhotas rapidamente e vi que os olhos de todos estavam fugindo. Isso me lembrou de algo. Não na Escola da Harmonia, mas definitivamente de algum outro lugar que já estive. O que era? A mesma atmosfera tomava conta da classe como uma névoa. Era uma sensação estranha de deja vu.

— Essa é sua nova colega de classe, Saki Watanabe. — O Sr. Endou escreveu meu nome no quadro branco. Usando seu cantus, ele de alguma forma fez as partículas pretas se juntarem no quadro na forma de palavras.

— Você já é amiga de estudantes da Escola da Harmonia, certo? Por favor, se dê bem com os de outras escolas também.

Aplausos se iniciaram pela sala. Eu percebi que todos estavam tão nervosos quanto eu.

Me sentindo um pouco melhor, olhei para a classe e vi que Maria, Satoru e Shun estavam acenando para mim.

Vendo mais de perto, percebi que mais ou menos um terço dos estudantes estavam no mesmo grau que eu na Escola da Harmonia. Apesar dos estudantes entrarem na academia separadamente, fazia sentido agrupá-los de acordo com a idade. Perceber isso aliviou minhas preocupações consideravelmente e pela primeira vez eu me perguntei o que iria aprender ali.

Durante o intervalo, os outros estudantes da Escola da Harmonia se juntaram ao meu redor como se estivessem me esperando o tempo todo.

— Levou algum tempo, né. — Foram as primeiras palavras de Shun. Se Satoru tivesse dito a mesma coisa, eu teria batido nele, mas apenas sorri.

— Desculpa por fazer você esperar.

— Sério, eu estava quase cansada de ficar esperando. — Maria disse, virando minha cabeça para vê-la e esfregando sua testa contra a minha.

— Eu só floresci tarde. Não é como se os Espíritos da Bênção que vêm cedo são melhores, certo?

— Verdade, mas você é a última da Escola da Harmonia. Por qualquer motivo, seu Espírito da Bênção foi muito indolente. — Satoru disse, completamente desatento de suas próprias deficiências.

— Vejo que não mudaram nada... — Ao dizer isso, uma questão surgiu em minha mente. — Espere, última? Isso não é verdade, ainda havia gente deixada para trás.

Todos ficaram em silêncio e as expressões ficaram tão brancas como uma máscara de pureza de shinshis.

— ... Nós não estudamos teorias aqui, aprendemos tarefas práticas. Sabia, estou no topo da classe em manipulação da água da superfície.

— Mas você é péssimo em troca de força.

— O professor disse que o que importa agora é a imagem mental.

Todos começaram a falar ao mesmo tempo. Tudo soou como balbúrdia para mim. Estavam discutindo sobre as aulas, como se mostrassem o conhecimento que adquiriram antes de mim. Eu não gostava daquela sensação. Mas eu caí no hábito que havia sido impregnado em nós, isto é, fingir que certos tópicos proibidos nunca existiram.

Já que eu não conseguia entender a conversa, eu ouvi atentamente, e formei uma primeira impressão bem estranha da classe. Inconfundivelmente, eu senti o mesmo em algum momento, em outro lugar.

Quando o sino tocou e todos voltaram para seus assentos, eu subitamente lembrei.

— A fazenda de lótus...

Apenas os ouvidos de Satoru captaram meu murmúrio.

— O que foi?

Após um momento de hesitação, eu respondi.

— Esta classe me lembra da fazenda. Lembra? A que fomos na Escola da Harmonia.

Ouvindo as palavras Escola da Harmonia, a expressão de Satoru se tornou sagaz.

— A Academia do Sábio é como uma fazenda? Do que você está falando?

— Apenas o sensação é a mesma. — Havia uma sensação desagradável que eu não conseguia definir.

— Não faço ideia do que você está falando. — Satoru também pareceu estar de mau humor de repente, mas nossa conversa terminou ali onde a aula começou.


Fazendas de Lótus, onde tínhamos ido em uma viagem de campo para a aula de ciências sociais, ficam em Kogane. Como a nossa graduação estava chegando perto, fomos levados em várias viagens de campo subitamente. Parecia que queriam que pensássemos sobre que tipo de trabalho iríamos querer no futuro. A visão dos sítios de produção nos encantou e nos fez querer crescer logo. Os produtos feitos em nos workshops de cerâmica e vidraria que eram parte da associação de artesanato eram extraordinários. Quando os vimos usando o cantus para criar peças de cerâmica incrivelmente fortes e vidros claros como o ar, nós declaramos que queríamos ser aprendizes lá após nos graduarmos da Academia do Sábio.

Mas o que nos deixou um maior impacto foi na nossa última viagem para fazendas de lótus.

As fazendas de lótus são uma série de fazendas experimentais espalhadas pelas vilas e o maior coletivo de fazendas da cidade. A primeira que fomos era um arrozal de água salgada em Shirasu. O arroz que comemos vem dos arrozais em Kogane, mas aqui havia campos de arroz imersos em água salgada. Usando algo chamado de osmose reversa, eles conseguiam filtrar o sal da água. Nós provamos o arroz, e para nossa surpresa, era completamente comestível, com apenas uma pitada de sal.

Na próxima vez, fomos para uma instalação de sericultura, onde vários dos bichos-da-seda deixavam casulos coloridos. A fábrica não apenas produzia através desses bichos-da-seda sem precisar tingir, mas também não enfraqueciam ou perdiam cor quando lavados.

No prédio vizinho havia espécies estrangeiras usadas como referência para reprodução seletiva. Bichos-da-seda da Indonésia eram conhecidos por sua seda dourada, bichos-da-seda Tasar da Índia faziam fios dez vezes mais grossos que o normal, centenas de bichos-da-seda da Uganda faziam casulos do tamanho de bolas de rúgbi, e mais.

Os melhores eram os bicho-da-seda de Hitachi deixados em um quarto isolado e hermético. Os bichos com três cabeças de dois metros estavam comendo um compilado grande de folhas de amoreira e simultaneamente cuspindo seda de uma de suas três bocas. Era como se houvessem esquecido que deveriam estar fazendo casulos e apenas jogavam seda por todas as direções. O interior da janela de observação tinha que ser limpado frequentemente para parar a seda de a cobrir completamente. O guia da tour explicou que como os insetos eram muito grandes, eles tinham problemas para respirar, então o oxigênio era bombeado no recinto. A concentração de oxigênio era tão alta que se houvesse uma chama aberta próxima, o prédio inteiro iria explodir, o que é o motivo dos bichos serem deixados em uma sala trancada.

Próxima à fazenda de sericultura havia campos de batatas, inhames, cebolas, rabanetes, morangos e outras plantas. Dessa vez era no meio do inverno e alguns dos campos estavam cobertos e bolhas que pareciam neve. Batatas e inhames eram suscetíveis a danos pela geada, então quando a temperatura caía demais eles usavam bolhas produzidas por inseto para manter as plantas quentes. Esses insetos eram originalmente um tipo de pestes prejudiciais conhecidas como cigarrinhas das raízes, mas foram mutadas para um uso útil com o cantus.

Os campos também eram protegidos por grandes vespas em couraças vermelhas brilhantes.

Vespas carmesim eram um híbrido da feroz vespa gigante e da vespa marrom. Elas comiam exclusivamente insetos prejudiciais e deixavam os humanos e o gado em paz.

Oposto aos campos, no lado mais longe da fazenda havia o celeiro.

Eu acho que há um motivo para nunca termos visitado o celeiro até o final. Ao contrário de plantas e insetos, animais alterados pelo cantus especificamente para produzir grandes quantidades de carne, leite e lã eram provavelmente desagradáveis de se ver. Então foi um alívio quando visitamos o celeiro de gado e vimos apenas vacas normais alinhadas em nossa frente.

— Que diabos? São só vacas normais.

Era admirável admirar a insensibilidade de Satoru.

— Não é verdade. — Shun apontou para o canto do celeiro. — Aquelas não são vacas com bolsas?

Todos viramos para olhar.

— Elas têm bolsas mesmo! — Maria exclamou.

Entre as pernas traseiras de uma vaca marrom havia um pequeno balão branco.

— Oh, todas as vacas ali são vacas com bolsas. — Disse o guia, um homem bem forte cujo nome eu esqueci. Ele parecia levemente desconfortável, como se tivéssemos tocado em um assunto que ele preferiria não discutir.

— Por que vocês não tiram as bolsas? — Satoru perguntou, sem perceber o desconforto do guia.

— Bem... desde os tempos antigos, todos os fazendeiros disseram que vacas com bolsas tem um sistema imunológico melhor e resistem a doenças. Estamos tentando determinar se é verdade ou não.

Como não tínhamos visto nenhum animal alterado em nossas viagens de campo até ali, eu pensei que era natural que estivéssemos intrigados pelas vacas com bolsa.

Para explicar melhor, eu tenho um livro chamado “A História Natural das Novas Ilhas do Japão” para referenciar. É estampado como “confidencial”. É a terceira classe de livros, tratados com descrição porque eles têm o potencial de ser prejudiciais para a mente de um leitor. Aqui está uma passagem.

Vacas com bolsa, antes chamadas de vacas saco, receberam seu nome pela anteriormente mencionada bolsa que possuem. É uma coincidência interessante que seu nome é similar ao rizocéfalo[4].

Falando em rizocéfalo, é um crustáceo relacionado à craca de bolota. Parecendo um saco, de onde conseguiu seu nome, à primeira vista não parece relacionado à crustáceos conhecidos como camarões ou caranguejos. Essa mudança veio por uma adaptação para parasitar outros crustáceos, como o caranguejo de luva japonês.

Como um cipride, a rizocéfala fêmea pega o corpo do caranguejo e entra em um estado infeccioso. Ela então injeta uma pequena moita de células somáticas no caranguejo. Essas células se grudam dentro do corpo e então perfuram o abdome e desenvolve seu saco. O saco é um ovário, e não possui membros ou órgãos digestivos. As células dentro do corpo crescem como estruturas em raízes que absorvem os nutrientes do caranguejo.

O caranguejo infectado se torna infértil, um fenômeno chamado de castração parasitária.

(Omitido)

Por outro lado, as vacas e bois saco são conhecidas por terem tumores nos testículos ou úteros. Como não afetam a saúde da vaca, acredita-se serem benignos e são deixados de lado. Mas em anos recentes, foi descoberto que são um organismo independente, como a rizocéfala. Além do mais, ele se desenvolveu a um ponto onde era parte do animal, criando uma nova espécie de vaca.

A origem dos sacos é incerta, mas a teoria que se desenvolveu por acidente é altamente aceita. Isso é ligado à um embrião de um gêmeo absorvendo o outro, que se torna um tumor.

Larvas de vacas com bolsa são encontradas em grandes quantidades nos testículos de bois normais. Durante a temporada de acasalamento, a larva é ejaculada junto com o esperma normal. Elas têm cerca de quatro centímetros de comprimento, sem orelhas ou olhos, dois grandes membros anteriores, um corpo similar a uma lagarta, e um ovipositor em formato de agulha.

A larva se propaga com seus membros anteriores escalando a vaca hospedeira até acharem uma área onde a pele é fina, então injetam um punhado de células somáticas. Enquanto as células crescem, um novo saco se desenvolve, e a vaca hospedeira se torna uma vaca com bolsa. Conseguindo isso, a larva seca e morre duas horas depois.

À primeira vista, a larva não possui nenhuma similaridade com as vacas normais, mas ainda pode ser categorizada como sendo da ordem artiodactyla, da classe bovidae. As garras dos membros anteriores são separadas como cascos de vaca. Essa é a única característica restante que mostra que os dois animais compartilham um ancestral.

Há um debate sobre se a vaca com bolsa está realmente inseminando a vaca hospedeira, ou se está apenas roubando seus nutrientes para dar à um ovo.

Há um conto popular, ou melhor, uma lenda urbana, rodeando a vaca com bolsa. Uma vez, a larva foi pega escalando em uma vaca. Enquanto era removida, soltou um barulho alto que parecia igual ao de uma vaca. As outras vacas ouviram e ficaram perturbadas, todas chorando ao mesmo tempo. Este autor teve inúmeras chances de observar uma larva de vacas com bolsa, mas infelizmente, nenhum choro foi ouvido.


É estranho como nós associamos o poder milagroso conhecido como cantus com um estranho animal chamado vaca com bolsa, silenciosamente comendo sua comida.

Provavelmente isso não é porque somos gerenciados iguais esses animais pela nossa escola, mas porque fomos todos marcados com uma identidade que ainda não sabíamos sobre.

Capítulo 04

A casa de cartas se formou em um piscar de olhos.

Eu olhei rapidamente para Satoru sentado ao meu lado. Parecia que ele estava indo bem. Ele já estava na quarta camada. Satoru sentiu que eu estava olhando e girou a carta de quatro de copas que estava levitando com uma expressão presunçosa em seu rosto.

Determinado a ganhar, eu foquei na casa de cartas a minha frente. Era uma tarefa simples – empilhar cartas de baralho em uma pirâmide – mas fazê-la envolvia muita disciplina no uso do cantus.

Acima de tudo havia a concentração. O toque mais leve ou o sopro do vendo iria desmoronar a casa. Em seguida havia a percepção espacial. Em terceiro era a multitarefa – você precisava prestar atenção em tudo isso enquanto procurava por sinais de que a casa estava prestes a cair, e arrumá-la a tempo.

Aliás, há uma história dizendo que quando Shisei Kaburagi tentou essa tarefa, ele conseguiu completá-la instantaneamente só imaginando uma pirâmide feita com oitenta e quatro cartas. Mas mais ninguém nunca foi testemunha disso, então provavelmente é só um conto exagerado.

Na Escola da Harmonia, fomos introduzidos à construção de casas de cartas em diversas ocasiões. Eu nunca pensei que seria uma preparação para a Academia do Sábio.

—Saki, rápido. — Satoru disse, desnecessariamente.

— Isso não é justo. Mas não se preocupe, não vou perder para você.

— Idiota, competir entre nós não vai adiantar de nada. Olhe para o time cinco, eles trabalham muito bem juntos.

Eu procurei e vi que todos os membros do time cinco estavam se mexendo no mesmo ritmo, movendo as cartas firmemente para o topo da pirâmide.

— E como sempre, nosso ace está com a bola toda.

Como Satoru havia dito, Shun era inegavelmente o melhor de nossa classe. Ele já tinha construído sete camadas e estava trabalhando na oitava. Mais ninguém na classe podia controlar as cartas do jeito que ele fazia, como as batidas gentis das asas de uma borboleta. Era fascinante de assistir.

— ...Mas também há alguém nos segurando. — Satoru suspirou, olhando por cima do grupo.

Ao lado de Satoru, Maria estava trabalhando quase na mesma velocidade de Shun, mas a técnica dela era desengonçada e ela tinha deixado suas cartas caírem duas vezes. Mas, como ela conseguia arrumá-las rapidamente toda vez, seu ritmo era o mesmo do nosso no total. Próximo a maria, Mamoru era o completo oposto. Ele era tão cuidadoso que irritava, mas o resultado era que sua casa era extremamente estável. Entretanto, o ritmo lento dele significa que ele estava apenas um pouquinho acima da classe.

O problema era Reiko, sentada no final. Ela não tinha nem completado uma camada ainda.

Era depressivo observar ser trabalho. Suas cartas tremiam da mesma forma que a mão de uma criança iria tremer se fossem ruins em construir pirâmides de cartas. Reiko era de Kogane, então eu nunca havia a visto na escola antes, e não tinha dúvidas de que ela também era ruim em fazer casas de cartas na Escola da Moralidade.

Mesmo assim, sua bagunça era impressionante. Quando parecia que ela finalmente havia conseguido que as cartas levantassem, elas colapsavam e ela teria que começar tudo novamente.

— É tão ruim que chega a ser engraçado. — Satoru balançou sua cabeça e voltou para suas próprias cartas. — Enquanto ela estiver aqui nós nunca iremos ganhar.

— E daí? Reiko é uma boa pessoa, ela só não teve seu momento ainda. — Mesmo tendo dito isso, eu sabia que era mentira. Reiko Amano não conseguia usar seu cantus muito bem. Não importava que tarefas fossem dadas, os resultados dela eram sempre diferentes dos objetivos ditados.

Mais cedo, estávamos brincando de um jogo similar à telefone sem fio, para afiar nossas habilidades de replicação de imagens. Cada grupo sentava em uma linha e é dada para a primeira pessoa uma pintura em óleo para olhar. Então ela reproduzia a imagem como um desenho na areia usando seu cantus e mostrava para a próxima pessoa na linha. A pessoa tinha apenas alguns segundos para ver o desenho antes de terem que reproduzir o mais fielmente possível. O time o qual o desenho final fosse mais fiel ao original ganhava.

Para nós, o time um, pensei que nossas técnicas de construção de imagem e transmissão fossem excepcionais. Shun especialmente se sobressaía do resto de nós. As imagens dele eram tão boas que pareciam fotografias. A segunda melhor era Maria. Infelizmente, eu não era tão habilidosa quando ela em produzir imagens fiéis e artísticas.

Se Satoru fosse o primeiro, ele provavelmente não conseguiria fazer, mas ele era ótimo em copiar desenhos de areia. Eu era o oposto; Eu conseguia criar desenhos de areia baseados nos originais. Mamoru era bem artístico e podia produzir imagens lindas, mas elas não eram sempre fiéis.

Dentre nós seis, Reiko era sempre a que estragava tudo. Se for para ser perfeitamente honesta, os desenhos de areia dela pareciam marcas deixadas pelos desesperos torturantes de um caranguejo morrendo. Não importava o quão de perto eu olhasse para suas imagens, eu não conseguia entender o que ela estava desenhando. Não importava a posição que estivesse na linha, seus desenhos nunca pareciam nada além de rabiscos aleatórios.

Na competição da casa de cartas também, a lentidão dela era um fator decisivo para a nossa perda. O time com o maior número de camadas cumulativas ganhava, mas antes disso, cada membro deveria construir pelo menos sete delas.

E dessa vez, Reiko fez um erro fatal.

Eu estava me concentrando tanto em minhas próprias cartas que ainda não estou completamente certa do que ela fez. As cartas dela subitamente saíram voando e bateram nas de Maria.

Mesmo sendo instável, a casa de cartas de Maria era a segunda maior do grupo. Ela desmoronou em um instante.

— Ah, me d-desculpe!

Obviamente, Reiko entrou em pânico. Maria ficou paralisada por alguns momentos antes de começar a reconstruir sua pirâmide duas vezes mais rápido do que estava fazendo. Mas considerando o pouco tempo que tínhamos sobrando, mesmo se as pirâmides de Shun e Maria estivessem completas, ainda não seria o suficiente. Antes que ela pudesse completar a terceira camada, um apito soou, sinalizando o fim da competição.

— Me desculpa. Eu não acredito que fiz algo assim... — Reiko continuou se desculpando incessantemente.

— Não se preocupe. Eu mesma a derrubei várias vezes, de qualquer forma. — Maria disse, sorrindo, mas seus olhos estavam vazios.

Aqui, eu vou dar uma breve introdução ao time um. Os seis membros eram Shun Aonuma, Maria Akizuki, Satoru Asahina, Reiko Amano, Mamoru Itou e eu, Saki Watanabe. Você deve ter percebido que nossos nomes são em ordem alfabética[5], então faria sentido para eu estar no time cinco, mas eu de alguma forma acabei no time um. Já que três dos meus bons amigos estão no mesmo grupo, eu pensei que fui colocada por consideração especial para me ajudar a me acostumar à Academia do Sábio.


Após a aula daquele dia, Maria, Satoru, Shun, Mamoru e eu andamos por um pequeno caminho que corria junto com o canal próximo a escola. Não era que não queríamos ser amigos de Reiko, já que andávamos com ela bem frequentemente, mas pensamos que seria estranho para ela ficar conosco após ter errado tanto.

— Eu quero poder usar meu poder todo logo. — Satoru disse, se alongando.

Todos se sentiam da mesma forma. Já que ainda éramos estudantes, não podíamos usar nosso canti em público. Diferente das aulas na Escola da Harmonia, as aulas na Academia do Sábio eram longas e tediosas, mas tínhamos que passar por elas antes de nosso canti ser liberto para os cursos práticos no fim do dia.

— Quando você conseguir usar seu poder todo, eu preciso me assegurar de fugir para o mais longe que puder. — Eu provoquei.

— Por quê? — Satoru disse taciturnamente.

— Nada não.

— Eu já tenho um controle perfeito. Mas você é desastrada como um bêbado.

— Eu acho que vocês dois são muito bons. — Shun disse, tentando nos acalmar.

— Ouvindo isso de você, não consigo ficar feliz. — Satoru chutou uma pedra no canal.

— Por quê? — Shun perguntou, genuinamente confuso. — Não estou mentindo. Eu realmente Acho que vocês são bons. Suas cartas não saíram voando de forma errada nem nada.

— Ah, para com isso. — Maria suspirou, tampando os ouvidos.

— Hmph, o Shun está inconscientemente nos menosprezando. Não acha, Saki?

Para falar a verdade, eu concordava com Satoru, mas não disse nada.

— Não me arraste com você. Você é o único sendo menosprezado.

— Quê? Não, não sou. — Satoru resmungou, e então ficou quieto repentinamente.

— O que foi? — Maria perguntou.

Satoru apontou para uma área do canal seis ou sete metros na nossa frente. “Olhem aquilo.”

Havia duas formas humanoides envoltas em mantos cor de terra.

— ...Ratos Monstros? — Maria sussurrou, torcendo um pedaço de seu cabelo vermelho entre os dedos.

— Sim. O que estão fazendo?

Shun estava fascinado, assim como eu. Essa foi a primeira vez que fiquei tão perto de um Rato Monstro.

— Não deveríamos encarar. — Mamoru avisou. Seu cabelo encaracolado sempre fazia parecer que sua cabeça estava explodindo. — Na Amizade, se víssemos Ratos Monstros, éramos avisados para não encarar ou chegar perto. Eles não falaram isso para vocês na Escola da Harmonia?

É claro que sim, mas é da natureza humana querer fazer coisas quando lhe proíbem. Nós avançamos lentamente, prestando atenção em nossos movimentos.

Eu lembrei o que meu pai havia dito quando eu era mais jovem. Ao nos aproximarmos, vimos que os Ratos Monstros estavam no processo de limpar o lixo que foi coletado nas curvas do canal onde a água fluía mais devagar. Estavam diligentemente pegando folhas e galhos com redes em uma vara de bambu.

Algo assim poderia ser feito em um instante com o cantus, mas não há dúvida de que os humanos achavam muito chato para gastar seu tempo.

— Estão trabalhando duro.

— Mas parece difícil segurar uma rede com mãos como aquelas.

Eu estava pensando o mesmo que Maria.

— Parece mesmo. Os esqueletos deles são estruturados diferentemente do nosso, só ficar em pé em duas pernas já é bem difícil.

Foi Shun quem disse. Mesmo que não pudéssemos ver seus corpos cobertos pelos mantos, os braços segurando as redes pareciam de roedores, e balançavam instavelmente em suas pernas.

— ...Não deveríamos estar os assistindo. — Mamoru deu alguns passos para trás e virou de costas para os Ratos Monstros.

— Qual é, nada vai aconte... Ei, cuidado! — Satoru correu para a frente gritando.

Um dos Ratos Monstros tentou levantar uma rede lotada de folhas que era mais pesada do que ele esperava. Com uma grande oscilação, ela foi lançada para frente.

O outro Rato Monstro tentou pegar, mas foi um segundo tarde demais. O primeiro Rato Monstro caiu de cabeça no canal.

Houve um grande barulho de água. Nós corremos para lá.

O Rato Monstro caído estava se debatendo debaixo da água, cerca de um metro pra frente. Eu não conseguia nadar muito bem. Além disso, folhas e galhos estavam enrolados ao redor dele, impossibilitando-o de se mexer.

Seu companheiro correu de lá para cá em pânico – ele não percebeu que poderia segurar a rede para o Rato Monstro pegar.

Eu respirei fundo e me concentrei.

— Saki, o que você está tentando fazer? — Maria perguntou, surpresa.

— Ajudar.

— Huh, como?

— É melhor não ter nada a ver com eles! — Mamoru gritou com uma voz covarde de trás.

— Está tudo bem, eu só tenho que levitar essa parte para trazê-lo de volta para a costa. Será fácil.

— Não pode estar falando sério...

— Você não pode usar seu cantus sempre que quiser.

— Eu também acho que você deve parar.

— Se eu não fizer nada ele vai morrer!

Eu me acalmei, tirei as vozes deles de dentro de minha cabeça e entoei meu mantra,

— Mas isso é muito ruim.

— Fomos ensinados a ter compaixão com todos os seres vivos, certo?

Eu foquei no Rato Monstro se debatendo na água. O problema era que ele continuava se movendo e todas as folhas e detritos tornavam difícil ter uma noção de seu tamanho.

— ...Vai ser mais fácil levitá-lo junto com as folhas. — Shun disse, percebendo meu dilema.

Eu dei um olhar agradecido para dele e ignorei os outros.

Eu me concentrei em levitar a massa de folhas, a imaginando se levantar. Finalmente, quebraram a tensão da superfície e pairaram sobre a água.

Água presa na pilha caía em cascata no canal. Partes de folhas que haviam escapado da minha atenção caíram. O Rato Monstro devia estar em algum lugar ali, mas eu não conseguia ver. Eu lentamente o guiei para a costa. Todos se afastaram para dar espaço.

Eu gentilmente soltei no chão.

O Rato Monstro estava vivo.

Batendo e chutando, ele conseguiu se virar e tossiu um pouco de água e bolhas. De perto, era bem grande. Tinha provavelmente um metro de altura completamente ereto.

— Uau, parece que você o pegou com uma rede. É uma levitação perfeita.

— Sim, graças ao seu conselho.

Enquanto eu estava elogiando Shun, Satoru se intrometeu.

— O que fazemos agora? Se a escola descobrir...

— Se eles não descobrirem, está tudo bem.

— Mas e se descobrirem?

Maria veio ao meu resgate.

— Todo mundo absolutamente deve manter isso em segredo, ok? Pelo bem da Saki.

— Ok. — Shun disse sem hesitar.

— Você também, Satoru, entendeu?

— Não precisa me falar. Mas e se escapar de alguma forma?

— Não parece que ninguém nos viu. Se nós não dissemos nada, vai ficar tudo bem. — Maria respondeu. — Mamoru?

— O quê?

— O que você quer dizer com “o quê” ....

—Nada aconteceu hoje. Não vi nada. Não tinha nada a ver com os Ratos Monstros nem nada.

— Bom garoto.

— Mas o que faremos sobre isso? — Satoru enrugou o nariz para o Rato Monstro.

— Não vai falar para ninguém.

— Ratos Monstros sabem falar? — Satoru parecia curioso.

Eu me aproximei do Rato Monstro que ainda estava deitado no chão. Me perguntei se ele estava machucado em algum lugar. Quando o outro Rato Monstro me viu, ele também caiu duro no chão.

Eles obviamente estavam com medo dos humanos.

— Eu, eu salvei a sua vida, entendeu? — Eu tentei falar gentilmente.

— Você não deve falar com Ratos Monstros! — Mamoru gritou com uma voz esgoelada de algum lugar atrás de mim.

— Ei, pode me ouvir?

O Rato Monstro encharcado concordou silenciosamente. Parecendo bem mais confuso agora que estava de quatro, ele se arrastou até mim e fez um movimento como se estivesse beijando meus sapatos.

Os dois se curvaram. De alguma forma, aquela simples ação estava repleta de significado. Repentinamente, eu realmente queria saber como o rosto deles eram.

— Ei, olhe para cá. — Eu bati palmas levemente.

— Saki, parei. — Maria soava um pouco atordoada.

— Sério, você não pode... Os Ratos Monstros. — Mamoru soava como se estivesse ainda mais longe.

— Você entende o que estou falando? Levante sua cabeça.

Os Ratos Monstros levantaram a cabeça nervosos.

De alguma forma, eu estava esperando um rosto fofo como o de um rato do campo, então fiquei chocada.

De baixo do capuz havia um rosto mais feio do que qualquer outro que eu havia visto em um ser vivo. Tinha um focinho achatado, mais como o de um porco do que de um rato, uma pele pálida e flácida pendurada em dobraduras e era coberta com pelos felpudos marrons, e olhos brilhantes e pequenos.

— Obrig★do. Obrgdu. Kikikikiki. Kakakakaga★…es. Deuses.

O Rato Monstro de repente começou a falar em uma voz estridente. Eu congelei em surpresa.

— Está falando... — Maria murmurou.

Os outros três estavam estupefatos.

— Qual é o seu nome? — Eu perguntei.

— §@★#◎&∈∂Å♪ — ele gorjeou em uma voz ritmada. Saliva espumou dos cantos de sua boca.

Eu sabia que estava falando seu nome, mas não há como escrever em japonês, não que eu sequer lembre qual era.

— Bem, parece que não temos que nos preocupar com eles nos dedurando. — Satoru disse, soando aliviado. — Não é como se qualquer um fosse entender o que eles dizem.

Nossa ansiedade foi embora, e começamos a rir. Mas por algum motivo, um arrepio percorreu em minha espinha enquanto eu olhava para os Ratos Monstros.

Parecia que eu havia tocado em algum tabu que estava escondido profundamente em meu coração.

— Apesar de não podermos usar seus nomes, deve haver algum outro jeito de diferenciá-los. — Shun devaneou.

— Dá para diferenciar pelas tatuagens.

Surpreendentemente, foi Mamoru que falou.

— Tatuagens? Onde?

— Algum lugar na testa. Deve haver a colônia e o número de identificação. — Mamoru disse, ainda de costas.

Eu coloquei minha mão provisoriamente na testa do Rato Monstro e levantei seu capuz. Ele continuou dócil e treinado como um cachorro.

— Aqui está.

Abaixo de sua teste, as palavras “Cabra 619” estavam tatuadas em tinta azul.

— O que essas palavras significam?

— Tem de ser o emblema da colônia. — Shun disse.

Ratos Monstros têm três características que são diferentes da maioria dos outros animais.

A primeira é sua aparência que é claramente de mamíferos, eles são eussociais, como formigas e abelhas, e vivem em colônias com uma rainha. Essa característica veio de seu ancestral, o rato-toupeira pelado do leste africano. Pequenas colônias têm apenas duzentos ou trezentos trabalhadores, mas as grandes podem ter milhares, indo até dez mil, trabalhadores.

Em terceiro, Ratos Monstros são bem mais inteligentes que golfinhos ou chipanzés. Alguns diriam que são tão inteligentes quanto humanos. Aqueles que juram fidelidade aos humanos e se tornam “colônias civilizadas” são protegidos em troca de suas homenagens e trabalho. As colônias são chamadas pelos nomes de vários insetos.

Por exemplo, a colônia com a maior força e mais frequentemente recrutada para operações de trabalho público é a colônia Vespa Gigante. Outras colônias pontilhadas ao redor de Kamisu 66 são as da Formiga de Madeira, Mosca de Veado, Libélula, Vespa Aranha, Mosca Assassina, Besouro de Veado Gigante, Grilo-Da-Caverna, Vespa de Papel, Besouro de Chão, Besouro-Tigre, Traça Cabra, Besouro Aquático, Grilo, Centopeia Azul, Fulgoromorpha, Mariposa Pirálide, Mariposa Pyralidae, Mariposa Tigre, Mosca Tachina, Diplópode, Aranha-da-Teia-Amarela, e mais.

— O “Cabra” provavelmente significa a colônia da Traça Cabra. — Shun disse.

— Eles provavelmente são todos tatuados, já que são tantos a ponto de você não reconhecer de vista.

— Então esse cara é um trabalhador da colônia da Traça Cabra.

Traça Cabra era uma colônia pequena com apenas duzentos trabalhadores.

— Trç★cabra. Traça Cabra. Chichichi. Fr★n.... Grrrr — Ele disse, tremendo.

— Deve estar com frio.

— Está completamente encharcado. E como Ratos Monstro vivem em tocas, imagino que sua temperatura corporal seja naturalmente baixa. — Shun disse.

Nós deixamos os Ratos Monstros irem. Os dois se curvaram e foram embora. Não importava quantas vezes eu olhasse para trás enquanto eles iam, eles continuavam curvados.

— Como eu pensei, só tem o método do besouro do esterco, né? — Maria disso.

Isso foi um mês depois do incidente com os Ratos Monstro.

— Isso é óbvio. — Satoru objetou. — Todo grupo vai pensar nisso. Além do mais, é impossível controlar a bola desse jeito.

Estávamos tendo uma discussão ao redor de um pedaço de argila colocada na mesa.

— E se fizéssemos um anel gigante e colocássemos a bola dentro? Dessa forma a bola iria mover o anel para onde quiséssemos. — Eu disse, balançando minhas pernas por estar em cima da mesa. A ideia me veio do nada e eu não achei que fosse tão ruim.

— Mas pode perder poder na metade, e se a bola rolar por cima do anel? — Satoru objetou novamente.

Eu estava prestes a bater nele quando Shun pontuou algo bem mais importante.

— Vai ser difícil se assegurar que o anel continue no chão o tempo inteiro. Se só uma parte dele levitar, receberemos uma punição.

— ...Certo. — Eu admiti.

— Não estamos indo para lugar nenhum só pensando. Por que não tentamos? Assim teremos uma noção de quanta argila precisaremos usar para fazer o empurrador.

Como Maria sugeriu, nós colocamos quase metade da argila para fazer o empurrador e a outra metade para fazer os atacantes.

— Assim? — Satoru pareceu decepcionado.

— Me pergunto quanto a bola pesa. — Maria devaneou.

Shun dobrou os braços e pensou. “É feita de mármore, então imagino que mais de dez quilos.”

— Isso é quase o tanto de argila que temos. Em outras palavras, o empurrador é mais ou menos metade desse peso. — Satoru suspirou.

— Mas como a argila seca enquanto é assada, também vai ficar mais leve, né?

— É mesmo! Então no fim, o empurrador vai ter mais ou menos um terço do peso da bola.

Todos pareciam confusos, mas não pude evitar de sorrir quando Shun concordou comigo.

— Então teremos que empurrar de trás, mesmo assim. — Mamoru disse.

— E voltamos para a estaca zero.

O torneio de bola era em cinco dias. Isso significava que nesses cinco dias nós tínhamos que decidir uma estratégia base, fazer um empurrador que funcionasse, atacantes e defensores de argila, e aprender a controlá-los perfeitamente.

Aqui vou explicar as regras do torneio. Há dois times, o de ofensa e o de defesa. Os de ataque rolam uma grande bola de mármore através do campo até o gol, enquanto a defesa tenta bloquear. O tempo total permitido por round é de dez minutos, e o time que levar menos tempo para marcar um gol é o campeão. No caso de nenhum dos times marcarem pontos, os dois jogam de defesa e de ofensa em um duelo de desempate, onde o primeiro a marcar um ponto ganha.

Pela partida, você só pode usar seu cantus, mas há uma restrição. Você não pode alterar a bola ou o campo com seu cantus. Isso significa que devemos ser bons em controlar nossas peças, o empurrador e os atacantes quando estivermos na ofensiva, e nossos defensores quando estivermos na defensiva. Além disso, nossas peças não podem perder contato com o chão. (Se fosse permitido usar peças flutuantes, poderíamos usar a bola para absorver qualquer impacto que o empurrador pudesse sofrer.)

O campo construído no pátio interno da escola tem dois metros de largura e dez de comprimento, e coberto com terra arenosa e pedaços de grama para que requeresse bastante concentração apenas para mover a bola em linha reta. A defesa podia colocar o gol onde quisesse, mas não podia fazer mais nada, como fazer buracos ou montanhas para protegê-lo,

As peças só tinham que estar dentro dos limites de peso. Éramos livres para decidir a forma, ou quantas queríamos usar, mas quanto mais peças usarmos, mais difícil seria para controlar tudo.

Mais uma restrição importante era de que não podíamos atacar o empurrador do oponente. Caso contrário, todos iriam mirar nele e ele seria destruído antes do outro time ter a chance de fazer alguma coisa. Entretanto, apenas um empurrador é imune ao ataque, então enquanto era permitido usar mais que um, seria desvantajoso. A maioria dos times usavam apenas um empurrador.

— Então, isso está bom para o empurrador? — Shun perguntou, com sua testa escorrendo suor.

Enquanto estávamos brincando com a argila, apenas Shun tinha as capacidades de moldá-la livremente para sua vontade. Era impossível para o resto de nós. A forma geral era um cone pequeno com um fundo redondo vazio como um barco para ajudar a deslizar pelo campo. Para controlar a bola, havia dois braços saindo dele em um ângulo de cento e vinte graus. Parecia uma pessoa com os braços esticados.

— Isso está bom. É simples, mas ainda parece legal. — Maria comentou.

— Então, agora tudo o que precisamos são de atacantes. Já que Shun está focando em fazer o empurrador funcionar, nós deveríamos dividir o resto do trabalho entre o resto de nós. — Satoru disse, usando a oportunidade para dar tarefas para nós.

— Como o time um está indo? — O Sr. Endou cutucou sua cabeça, sorrindo para nós. Seu rosto redondo, contornado por seu cabelo e barba, havia feito-o ganhar o estranho apelido de “Príncipe do Sol”.

— Acabamos de terminar o design do empurrador. — Satoru disse, mostrando o modelo orgulhosamente.

— Oh, vocês fizeram um trabalho muito bom em tão pouco tempo.

— Sim, estamos pensando em deixá-lo mais duro agora.

— Quem está controlando o empurrador?

— Shun.

— Como eu esperava. — Sr. Endou concordou.

— Bem, o resto de vocês trabalhe duro nos atacantes.

— Sim, senhor! — Nós respondemos energeticamente.

Mais tarde, depois de uma discussão calorosa, decidimos em ter cinco atacantes. Shun iria controlar o empurrador e um atacante simultaneamente enquanto o resto de nós teríamos um atacante cada.

Naquele momento, ninguém lembrava que costumava ter mais um integrante em nosso time.


Nosso primeiro round era contra o time cinco. Foi um golpe de sorte. O Rumor era de que o time três tinha construído as melhores peças e era o favorito para ganhar a competição, e o time dois tinha sido pego com comportamento suspeito.

Um round de pedra-papel-tesoura determinou que seríamos os primeiros a atacar. Já que era nossa primeira partira, estávamos nervosos para ver como seriam os defensores do time cinco. Eles tinham seis defensores em formato de parede se movendo de um lado para o outro, bloqueando toda a largura do nosso caminho.

Nós nos amontoamos em um círculo, cada um recitando nossos mantras silenciosamente.

— Como esperado, eles estão usando a estratégia mais básica. — Maria sussurrou, parecendo encantada.

— Isso não vai levar nem meio minuto. — Satoru riu como se já tivesse ganho.

— Vamos invadir pelo centro. — Shun disse quietamente. — Com esse tipo de defesa, nós podemos invadir por onde quisermos, mas parece que o meio do campo é o mais liso.

Quando nosso empurrador e os atacantes foram para o campo, todos os membros do time cinco pareciam perturbados.

O empurrador deslizou lentamente para sua posição com seus braços levantados atrás da bola.

Os atacantes não possuíam uma formação limpa. Três estavam posicionados em triângulo na frente da bola e os outros dois estavam guardando os lados.

Os atacantes da vanguarda eram em formado de pirâmides triangulares, com a ponta apontada para frente. Eles pareciam aviões de papel porque a longa beirada da pirâmide estava tocando o chão, e a parte lisa virada para cima. Os dois guardas eram bem pesados, em formato de cilindros esmagados, com várias protuberâncias na superfície. Na verdade, as protuberâncias não tinham um propósito, mas tinham o efeito de deixar os guardas parecendo mais robustos.

— Joguem limpo, trabalhem juntos como um time e façam seu melhor. Entenderam? — O Príncipe do Sol anunciou, e assoprou o apito para o início da partida.

A vanguarda avançou lentamente. O empurrador estava ganhando poder, então a bola pesada continuou onde estava. Enquanto estava estacionada, a bola era vulnerável, mas tentar apressá-la demais arriscaria prejudicar o empurrador. E novamente, como Shun estava controlando-o, essa asneira era inimaginável.

Os defensores não conseguiam criar coragem para avançar e continuaram balançando inutilmente de um lado para o outro.

A bola finalmente começou a se mover para a frente. Ela gradualmente ganhou velocidade e se arremessou para baixo no campo com os três atacantes liderando o ataque.

O time cinco finalmente percebeu nossos planos e se apressaram para juntar suas defesas no centro, mas era tarde demais. Iríamos destruí-los em um único tiro. Os atacantes araram através das pesadas paredes da defesa como se fossem feitas de papel. Um segundo depois, a bola de mármore ultrapassou. Tudo isso aconteceu em um piscar de olhos.

No segundo que quebramos sua defesa, o time cinco foi derrotado. A bola de mármore foi direto para o gol e caiu no buraco com um baque ressoante. O tempo foi vinte e seis segundos, mais rápido do que o Satoru tinha previsto.

— Queria que tivessem tentado mais; isso não foi nem uma competição. — Satoru disse.

— Sério, era como se eles nem tivessem defesa alguma. — Até o normalmente quieto Mamoru concordou.

Mas se nos tornássemos complacentes, as coisas poderiam piorar depois.

— O outro lado ainda pode atacar. — Eu tentei focá-los. — Nós não ganhamos ainda.

— Mas nós basicamente já ganhamos, certo? Não importa como eu veja, não tem como eles marcarem um gol em menos de vinte e seis segundos. — Satoru disse, ainda sorrindo.

— Mas nunca sabemos o que pode acontecer. Não abaixem a guarda. — Shun disse enquanto movíamos nossos defensores pelo campo.

Quando vimos as peças que o time cinco estava usando, ficamos chocados.

Como a defesa deles era tão básica, esperávamos que seus atacantes fossem o mesmo. Infelizmente nos os tínhamos subestimado. Eles usaram uma estratégia de tudo ou nada.

— O que é aquilo? Huh? — Maria disse em voz baixa. — Todos os seis parecem iguais.

As peças eram retangulares, com um braço protuberante como um martelo de sino.

— Eles fizeram todos como empurradores. — Satoru sussurrou.

O Príncipe do Sol pegou um dos empurradores e desenhou um círculo vermelho nele, indicando que aquele era o eu não poderia ser atacado.

— Mas é permitido atacar todos os outros, certo? Então aquele ainda não tem nenhum defensor para o proteger... — Eu disse.

— Tudo bem se um ou dois empurradores forem prejudicados. Mas se todas as seis peças empurrarem, qualquer um dos nossos defensores seria esmagado pela velocidade da bola. — Satoru respondeu.

Então era isso. O apito soou e a bola começou a rolar, rapidamente ganhando velocidade.

Quatro dos nossos defensores são em formato de batente de porta, a ideia era que pudéssemos jogá-los para debaixo da bola para diminuir seu movimento e tirá-la da pista. Mas dois deles saíram voando pela velocidade da bola antes que pudessem fazer qualquer coisa.

Os dois que sobraram foram atrás dos empurradores na beirada. Um conseguiu jogar um empurrador para fora, mas com os cinco que continuavam, a bola não mostrava nenhum sinal de diminuir de velocidade.

— Isso é ruim. Nesse ritmo... — Satoru gritou.

A bola estava se movendo muito mais rápido que a nossa, então se marcasse um gol, perderíamos.

Nossa carta trunfo era nosso quinto defensor, sentado no meio do campo. Ele mirou no fim do caminho que a bola seguia.

— Shun, deixo com você! — Satoru gritou.

O defensor tinha formato de um disco grosso, com um botão no fundo onde tocava no chão. Quando a bola rolasse no defensor, ela iria girar cento e oitenta graus, mandando a bola de volta para onde havia vindo. Foi a brilhante ideia do Shun.

A bola veio correndo pelo caminho em uma velocidade incrível. Mas eu não tinha dúvidas de que Shun iria conseguir cronometrar perfeitamente.

Entretanto, algo inesperado aconteceu. A bola bateu em um pedaço irregular do caminho e pulou um pouquinho no ar.

Shun instantaneamente ajustou o defensor para que a bola não pulasse sobre ele.

A bola caiu em cima do defensor com um ruído. Apesar do Shun girar o defensor, a bola voltou a rolar, e continuou com seu caminho inalterado.

— É tarde demais agora... — Satoru disse desanimado.

Nesse ritmo, não levaria vinte e seis, mas sim dezesseis segundos para atingir o gol. Bem quando eu desviei o olhar, Maria gritou.

— Ah! O que é aquilo?

Eu olhei para cima e vi um cenário imprevisível se desenrolar. A bola havia ganho tanta velocidade que o time cinco havia perdido totalmente o controle dela.

Um dos empurradores foi jogado para frente da bola e quebrou.

As forças direcionando a bola se tornaram desiguais e a bola pendeu para um lado.

Não havia como parar a bola mais. Ela perdeu o gol por uma margem gigante e saiu do campo.

— Como o time cinco não pode mais continuar, o time um venceu. — A voz do Príncipe do Sol soou como uma voz vindo dos céus.

— Isso!

— Passamos no primeiro round!

— O time cinco realmente se sabotou. Provavelmente porque as táticas eram extremas demais.

Enquanto nos reuníamos para celebrar nossa vitória, eu percebi que Shun estava parado do lado de fora do círculo.

— O que houve? — Eu perguntei.

Shun virou para mim, segurando o defensor e parecendo desanimado.

— Isso é ruim. Quebrou.

— Huh?

Todos se juntaram ao redor de Shun. Já que a argila era assada em temperaturas altas, deveria ter força para aguentar o peso da bola de mármore. Além do mais, nunca esperávamos que a bola fosse pular e cair em cima do disco.

— Bem, não sabemos se teremos uma ou duas partidas ainda, mas isso significa que não poderemos usá-lo? — Maria perguntou.

— Sim, provavelmente vai quebrar da próxima vez que uma bola rolar nele. Vai ser impossível girá-lo e tirar a bola do curso.

— Então não temos escolha se não ir com apenas quatro defensores...

Tentamos criar contra medidas, mas não conseguimos pensar em nada bom, então decidimos tirar uma pausa e descobrir quem seriam nossos próximos oponentes.

Como havia cinco times, os números eram desiguais para um torneio. Como fazem na Academia do Sábio é que dois pares de times são sorteados para competir, e os dois times vencedores tiram no palito. O vencedor continua imediatamente para o round final e o perdedor compete com o time que foi deixado de lado no primeiro round. O vencedor naquele round se torna o outro finalista.

Dependendo de sua sorte, você podia vencer o torneio com apenas duas partidas, ou ter que fazer todas as três.

De qualquer forma, nós fomos assistir o ataque entre o time três e quatro. Como foi dito nos rumores, o time três era forte, e vimos sua ofensa e defesa.

Seu empurrador era de um formato curvado complexo, como um cavalo-marinho, que podia controlar a bola perfeitamente. Os atacantes eram similares aos nossos, mas pareciam mais refinados.

O que nos surpreendeu era como eles usavam seus dois defensores, que tinham formato de kokeshi[6]. Entre os dois havia uma corda esticada feita de argila molhada. Quando a bola rolava por cima da corta, ela naturalmente se enrolava na bola e evitava dela ir para a frente. Apesar de o time quatro eventualmente fazer o gol, eles perderam muito tempo.

— Eles são bem inteligentes em pensar naquilo. — Satoru disse a contragosto.

— Nós estávamos errados em assumir que tínhamos que usar a argila dura.

— Parece que eles estavam bem confiantes de que iram fazer o oponente perder tempo o suficiente para assegurar a vitória.

— O time três definitivamente vai ganhar. — Maria disse com um olhar raro de admiração.

O time três ganhou do time quatro por uma margem gigante de vinte e dois segundos para sete minutos e cinquenta e nove segundos. Nós tiramos no palito contra o time três e felizmente conseguimos avançar para as finais.

— Parece que tivemos sorte.

— Já que temos tempo, vamos pensar em uma boa estratégia.

— Podemos consertar o disco?

— Meu cantus não é poderoso o suficiente para assar mais argila nele para restaurá-lo perfeitamente. O máximo que posso fazer é remedá-lo temporariamente.

Enquanto Shun, Satoru e eu tentávamos pensar em uma solução, Maria e Mamoru foram assistir a semifinal entre os times três e dois.

— De qualquer forma, vamos tentar encher os rachados no disco primeiro.

— Conseguimos pegar mais argila para arrumar?

Satoru foi levar minha pergunta para o Príncipe do Sol. No fim, nos disseram que poderíamos trocar algumas de nossas peças pela mesma quantidade de argila que as peças pesavam. Mas como argila assada era mais leve que argila molhada, o tanto que conseguiríamos em retorno era muito menos.

— Não há nada que possamos fazer. Há um defensor que foi afetado antes, então vamos trocá-lo.

Nós enchemos as rachaduras e Shun endureceu a argila com seu cantus. Como deveríamos usar a argila que sobrou? Eu a amassei em uma bola, então a achatei até que ficasse fina como papel.

Espera um pouco. Talvez isso...

— Saki, pare de brincar com isso. — Satoru disse.

— Ei, nós talvez possamos ganhar do time três com isso.

— Do que você está falando?

Shun olhou através do disco reparado. “Você pensou em algo?”

Eu concordei provisoriamente, e contei sobre a minha ideia.

— Incrível, você é um gênio.

Meus ouvidos coraram pelo elogio de Shun.

— Sim, é um truque bem barato, mas eles definitivamente não vão esperar. — Satoru disse. Como sempre, ele estava tentando me insultar, mas não conseguia negar que a ideia era boa.

— Devemos fazer, Satoru. Não tem outro jeito.

— Sim, eu acho.

— Não temos tempo para tentar mais nada.

Todos começamos a amassar um novo pedaço de argila e o grudamos no que eu havia feito antes. Como estávamos todos trabalhando na mesma coisa, não pudemos usar nosso cantus, então não tínhamos escolha a não ser fazer tudo com as mãos. Havíamos acabado quando Maria e Mamoru surgiram no quarto.

— As semifinais acabaram. E algo muito ruim aconteceu!

— Não me diga, estamos contra o time três? Mas temos um plano contra eles. — Satoru disse, como se ele que tivesse tido a ideia.

— Não. — Maria disse. — O time três perdeu. Nosso oponente nas finais é o time dois!

Capítulo 05

Nós encontramos o time três saindo enquanto estávamos indo para o pátio interno.

— Eu realmente pensei que iríamos contra vocês na final. — Eu disse para Hiroshi.

— O mesmo, achei que iríamos vencer. — Hiroshi disse arrependido. — Se isso não tivesse acontecido... — Ele segurava o empurrador em formato de ferradura. Uma grande parte do fundo tinha sido arrancada.

— Como aconteceu?

— Um dos defensores bateu nele por acidente. — Hiroshi disse, percorrendo com seu dedo as beiras quebradas. — A bola começou a rolar pelo caminho errado e levou mais de um minuto para colocá-la no caminho certo de novo.

— No fim, o time dois ganhou com um minuto e trinta e seis segundos contra um minuto e quarenta e um segundos. Foi muito cruel, não acha? — A garota mais arrogante de nossa classe, Misuzu, colocou a mão no ombro de Hiroshi e suspirou.

— Foi culpa deles de terem batido em você.

— Bem, foi um acidente, então não dá para fazer nada. — Hiroshi disse de forma não convincente. — Tenha cuidado. — Ele disse ao sair. — Quem sabe o que pode acontecer nas finais.

Ouvir algo assim antes de uma partida parecia um sinal. Começamos a prestar mais atenção em tudo ao nosso redor. E quando vimos o atacante do time dois, fomos pegos de surpresa.

— Está montado em um pneu? — Satoru sussurrou desacreditado.

— Nós consideramos isso também, e decidimos não fazer porque o eixo não iria aguentar. Que estranho. Não é uma má ideia fazer isso com argila?

Shun encarou o atacante.

— Olhe mais perto; é uma esfera, não um pneu.

O corpo principal do empurrador tinha uma esfera colocada em baixo. Já que só dava para ver metade dela, parecia um pneu.

— Parece que o corpo só está montado na esfera. Se algo bater, ele não vai cair? — Satoru disse ao calcular. — Eles deviam ter enfiado tudo.

— Não, se colocarem muito, será fácil para a areia entrar, o que seria um desastre. Mas mesmo agora, eu acho que vai quebrar logo de qualquer forma. — Shun disse duvidoso.

— Se areia parar a esfera de se mover, então vai ser o mesmo que puxá-la normalmente, certo? Eles provavelmente só querem um bom começo para invadir a defesa. — Maria disse calmamente.

Nossas perguntas foram respondidas logo que a partida começou.

— Dois deles...! — Eu exclamei surpresa.

Os dois aces do time dois, Ryou e Akira, estavam controlando o empurrador.

Ryou provavelmente estava operando o corpo do empurrador para direcionar a bola de mármore, enquanto Akira se concentrava em deixar as duas partes juntas, além de remover qualquer coisa que pudesse bater na esfera. Ter duas pessoas usando seus canti em tanta proximidade é perigoso, então a maioria das pessoas iria evitar ter múltiplas pessoas controlando uma pessoa, mas nesse caso os benefícios eram maiores do que os riscos.

Já que a esfera não criava muita fricção contra o chão, eles poderiam se mover suavemente usando seus canti. Mesmo quando estavam se movendo tão rápido quanto o time cinco, eles tinham um controle perfeito da bola de mármore.

Mesmo que tentássemos defender o máximo possível, o empurrador desviou facilmente entre as lacunas de nossas defensores.

O defensor de Satoru fez uma volta em U para perseguir o empurrador e bateu no de Mamoru que se movia lentamente, mandando-o para fora do campo.

— Está quebrado. — Eu disse para Shun, suspirando.

— Parece que sim. Aquele empurrador é mesmo impressionante. Agora podemos contar apenas com que a nossa ideia funcione.

Nós paramos de controlar os defensores e nos posicionamos para monitorar o ataque. Vendo isso, os membros do time dois pareceram pensar que tínhamos desistido e comemoraram apressadamente. Então pararam abruptamente e olharam ao redor, sem conseguir acreditar.

— O que está havendo? Não tem nenhum gol. — Manabu gritou para nós.

— Tem sim. — Shun respondeu.

— Onde?

— Não temos que dizer nada para vocês. — Satoru disse maliciosamente.

— Ei, pare o cronômetro! Tem algo errado. — Manabu reclamou.

— Não ouse. — Maria intimou o cronometrista, um estudante do time quatro. — Não pare o tempo até nosso time ter vencido.

— Estou falando sério! Como podemos continuar a partida se não tem um gol?

— Como eu disse, tem um sim. — Shun disse calmamente para o Manabu irritado.

— Procure. Vai lhe custar tempo. — Satoru insultou.

Mesmo sendo sua colega de time, eu achei que Satoru estava sendo irritante. Para o inimigo, ele devia estar sendo enfurecedor.

— Só estamos perdendo tempo se não tem um gol.

— Tem um gol. Se não tivesse, estaríamos violando as regras, e perderíamos a partida. — Shun disse silenciosamente.

Manabu procurou desconfiado. Se conseguíssemos continuar com isso por apenas mais um pouco, eles iriam perder quase dois minutos inteiros.

— .... Está escondido, não está? — Um dos membros percebeu.

Apesar de terem escaneado o campo desesperadamente, o gol não podia ser visto.

— Isso é trapaça! — Manabu resmungou rangendo os dentes.

— Não há nenhuma regra que diga que não se pode esconder o gol.

— Tem sim! Alterar o campo é uma violação grave.

— Bem, nós não mudamos o campo de forma alguma. Devemos te dar uma dica? — Satoru perguntou.

Com medo que ele deixasse alguma coisa escapar no calor do momento, eu interrompi.

— Nós vamos te contar o truque depois. Mas você não deveria continuar procurando? Isso está contando no seu tempo, sabia?

Manabu parecia perplexo, mas voltou a procurar pelo gol. Mesmo se eles achassem agora, mais de um minuto tinha se passado. E era possível também que eles nunca achassem. O gol tinha sido perfeitamente coberto pela argila fina disfarçada para parecer o chão arenoso. Assim como um raio toca no oceano para se misturar, a beira do disco estava coberta de areia. (Ao contrário do argumento de Satoru de que não estávamos alterando o campo, o que estávamos fazendo talvez fosse quebrar as regras apenas um pouquinho.)

Por algum tempo, o time dois empurrou a bola pelo campo, procurando pelo gol sem obter sucesso. Então, por sorte, eles conseguiram rolar por cima do disco. Como o disco havia sido feito logo antes da partida, ele não estava fortificado o suficiente e não poderia aguentar o peso de dez quilos da bola. Ele quebrou ao meio e a bola caiu no gol.

— Ah, quebrou facilmente, assim como pensamos.

— Mas cumpriu seu propósito. Eles levaram mais de três minutos então deve ser uma vitória fácil para nós. — Satoru disse otimista.

Fomos todos levados pelo entusiasmo dele. Não havia como os defensores do time dois serem fortes o suficiente para nos pararem por três minutos.

Mesmo ao mudar de lado e mover nosso empurrador pelo campo, ainda estávamos confiantes.

Não percebemos que havia algo errado até o time dois começou a se aproximar em ondas, com quase dez defensores. Cada pessoa controlava ao menos dois e atacava indiscriminadamente, batendo sem piedade nos nossos atacantes. Como havia muitos, não conseguíamos parar a todos. Alguns sobraram e seguiram em direção à bola.

Mesmo cara a cara com os defensores, Shun continuou movendo a bola para frente calmamente. Como ainda tínhamos três minutos para gastar, não havia pressa.

Estávamos quase no meio do campo; mesmo que um minuto houvesse passado, já conseguíamos ver o gol na frente. Mesmo que o time dois tivesse muitos defensores, eles eram pequenos e leves e não tinham a força para parar o empurrador. A vitória era possível para nós.

Naquele momento, a bola parou aos arrancos como se tivesse sido segurada por uma corrente. Shun pareceu surpreso. Quando tentamos empurrar a bola mais fortemente, algo aconteceu.

Um defensor veio voando do lado, passou pela bola e bateu direto no empurrador.

Com um alto e claro som como um sino, peças de cerâmica voaram pelo ar.

Todos arfaram. O defensor voou do campo, e vimos que o braço esquerdo do nosso empurrador foi quebrado.

Mesmo que a partida não tivesse parado, todos nós, e todos os membros do time dois, ficamos em choque. Com a exceção de uma pessoa.

Outro defensor veio na mesma direção e empurrou a bola. Lentamente ela rolou para fora do campo.

Quem fez isso? Eu olhei para os rostos confusos do time dois e vi Manabu rindo maliciosamente. No instinto, eu me virei, sentindo que havia visto algo que não deveria.

— Ei! O que diabos está fazendo? — Satoru gritou furioso. — Seu... Seu... — Ele não conseguia nem dizer o resto.

— Desculpa, foi um acidente. — Manabu disse.

— Um acidente? Que desculpinha. — Maria gritou.

— Ok, pare o tempo. — O Príncipe do Sol entrou entre nós.

O momento de sua aparição foi impecável; ele provavelmente estava nos assistindo de algum lugar.

— É triste, mas por causa do acidente, a partida final foi um empate.

— Quê? Mas o outro time violou as regras, certo? — Sun disse vigorosamente em um momento raro de protesto.

— Não, foi um acidente. Os dois times, um e dois, podem ser considerados vencedores, ok?

Ouvindo o que o professor falou, ninguém ousou reclamar.

O torneio que tinha engajado a classe inteira acabou nesse ponto inesperado.

— Não acredito nisso. Ele definitivamente fez de propósito! — Maria fervia. — O time três até nos avisou antes da partida.

— Sim, não tem como ter sido um acidente. — Mamoru disse ao concordar.

— Ele planejou tudo. — Satoru entrou na conversa. — desviando da bola, batendo no braço do empurrador, foi tudo parte do plano. Não acha, Shun?

Shun permaneceu quieto, com os braços cruzados.

— O quê? Não me diga que você acredita nele?

Shun balançou a cabeça.

— Não... estou pensando no que aconteceu antes disso.

— Antes?

— O empurrador parou, como se tivesse batido em uma parede.

— Huh?

— Tem certeza?

— Sim, senti o empurrador bem estranho. E não é como se tivesse algo no chão o parando.

Ficamos sem palavras. Shun tinha os sentidos mais apurados de todos nós, e ele não era do tipo de inventar coisas assim.

Nesse caso, a única explicação possível era que alguém estava usando seu cantus para parar nossa bola. Além de quebrar as regras do torneio sobre usar o cantus diretamente na bola, o fato de que alguém havia interferido no cantus de outra pessoa — eu mencionei isso antes — era uma violação grave do Código de Ética. Se dois canti entrassem em contato um com o outro, uma interferência de padrão arco-íris iria aparecer e o espaço ficaria distorcido, criando um ambiente extremamente perigoso.

Em outras palavras, alguém no time dois estava aceitando quebrar as regras mais fundamentais.

Imaginar uma pessoa fazendo isso era tão perturbador que eu senti como se o chão estivesse bem longe de meus pés. Aquele dia, ficamos em silêncio na volta para casa. Todo mundo provavelmente estava em choque. Mas mesmo naquela época, não sabíamos a verdadeira natureza do medo que se contorcia dentro de nós.

Durante minha puberdade, mesmo os menores problemas pareciam como se fossem o fim do mundo. Mas nossas mentes jovens e inocentes não ficaram preocupadas por muito tempo; logo esquecíamos o que estava causando tanta ansiedade.

Além disso, graças a um mecanismo de defesa inconsciente que chamamos de esquecimento, até problemas mais sérios que iriam nos fazer questionar o mundo em que vivemos desapareceram de nossas mentes como fios de fumaça.

Uma vez que o torneio da bola havia acabado, nós viramos nossa atenção para o evento mais importante que a Academia do Sábio fazia todo ano, o acampamento de verão. Mesmo que o nome faça parecer feliz e despreocupado, era na verdade um acampamento que durava a semana toda repleto de ação onde times remavam o Rio Tone e viviam em tendas sem nenhuma supervisão adulta. Tínhamos que ter a aprovação do nosso itinerário pelo nosso professor para ter certeza de que não iria bater com a agenda de outro time, mas isso era a única coisa que conseguiríamos dele. Essa seria nossa primeira vez saindo da Barreira Sagrada desde nossa visita ao Templo da Pureza, então todo mundo estava excitado e nervoso como se tivessem nos dito que iríamos explorar um novo planeta.

Nossa antecipação e ansiedade cresciam mais intensamente a cada dia, e toda hora que nos víamos, alguém tinha uma nova história ou rumor ou teoria que haviam ouvido sobre o acampamento de verão. Apesar de nenhuma dessas discussões serem baseadas em fatos, e, portanto, não iriam nos ajudar na viagem, elas tiravam nossas cabeças das nossas preocupações.

E então, o gosto amargo da conclusão insatisfatória do torneio da bola não ficou muito tempo em nossas línguas. Não havíamos lembrado da longa ausência de Reiko Amano, e não estávamos preocupados com o fato de que outro estudante, Manabu Katayama, tinha desaparecido do nosso meio.

Claro, essa falha de pensamento é prova inegável de que nossas memórias estavam sendo hábil e meticulosamente manipuladas.

— Saki, reme direito. — Satoru reclamou pela trigésima vez.

— Eu estou remando direito, você que não está cooperando. — Eu respondi pela trigésima vez.

Canoas canadenses são operadas por um par de remadores sentados em linha, mas se seus movimentos não estiverem corretamente sincronizados, eles poderiam remar para sempre e não chegar a lugar algum. O que isso significava era que Satoru e eu, parceiros por sorteio, éramos o pior par possível.

— Cara, por que aquele par é tão diferente da gente?

Da nossa perspectiva, Maria e Mamoru estavam em perfeita harmonia. Mesmo que só tivéssemos tido uma aula de duas horas sobre como operar a canoa no dia anterior, parecia que eles eram parceiros por anos. Não só isso, mas Mamoru tinha tempo o suficiente para entreter Maria com os arco-íris que ele fazia com a espuma da esteira do barco.

— Olhe bem para eles. Mamoru está acompanhando a velocidade de Maria. Como a pessoa na frente não pode ver o que está acontecendo atrás, é função da segunda pessoa se adaptar à primeira.

— Mas a Maria está remando direito. Você só continua olhando a vista e esquece de remar. — Satoru continuou a resmungar acusações falsas.

A brisa do início do verão que flutuava pela larga expansão do rio era maravilhosamente fresca. Eu parei de remar apenas por um momento e tirei meu chapéu, deixando o vento provocar meu cabelo. A toalha sobre meus ombros balançou como uma capa, expondo as costas de minha camiseta suada para o vento secar. O colete salva-vidas de borracha era torturante para se vestir, mas era uma precaução necessária.

Por toda a margem do rio havia aglomerados de juncos, e os gorjeios da grande toutinegra deles podiam ser ouvidos vindo de dentro.

De repente, eu senti a canoa ganhar velocidade e deslizar para a frente suavemente. Por um segundo eu pensei que Satoru tinha visto o erro em sua forma de remar e estava carregando o barco com toda a sua força. Mas é claro que não era isso.

Eu olhei para trás e vi que ele estava pendendo para um lado do barco, com uma mão em seu queixo e a outra sendo arrastada pela água.

— O que está fazendo? — Eu perguntei séria.

Ele olhou para cima. “O rio é tão gostoso, como o oceano, só que sem a espuma salgada”, ele disse, não entendendo o que eu queria dizer.

— Não era você que disse que deveríamos ir o mais rápido que podíamos sem contar com nosso canti? Já desistiu?

— Não seja boba. Nós poderíamos ter feito isso se estivéssemos indo para baixo, mas é muito difícil remar contra a corrente. — Satoru bocejou.

— É por isso que estávamos compensando isso com nosso cantus, então...

— Se vai ter todo esse trabalho, por que só não usar o cantus para impulsionar o barco em primeiro lugar? De qualquer forma, podemos sempre remar na volta.

Era inútil argumentar com Satoru quando ele estava em seu estado preguiçoso. Eu virei minha atenção para o cenário mais uma vez. Olhando Maria e Mamoru juntos mais atentamente, e Shun remando sozinho, eu pude perceber que os canti deles estava fazendo mais do que só cancelar a força do rio que corria contra eles. Parece que é da natureza humana pegar o caminho mais fácil.

Shun acenou para nós da margem do rio e apontou para os juncos com seu remo. As outras duas canoas mudaram de curso e foram em direção à ele.

— Olhe, um ninho de toutinegras.

O pequeno ninho foi construído na altura do peito, então podia vê-lo se levantasse da canoa. A canoa balançou de um lado para o outro; Satoru segurou os lados para ter equilíbrio e olhou para o ninho.

— Uau, é mesmo. Mas isso...

O ninho tinha cerca de sete ou oito centímetros de diâmetro, apoiado cuidadosamente em três juncos grossos. Dentro havia cinco pequenos ovos salpicados de marrom.

— ... é realmente um ninho de toutinegra? Pode ser de uma Kayanosuzukuri, né?

Para ser honesta, eu não conseguia, e ainda não consigo, diferenciá-los.

A Kayanosuzukuri ganhou seu nome pelo fato de que constrói seus ninhos em campos de miscanto, mas na realidade, ela faz mais frequentemente nos juncos na margem do rio.

— É real. — Satoru disse de seu lugar. — Kayanosuzukuris têm que fazer muito mais ninhos, além disso elas não criam seus filhotes, então os ninhos sempre são meio brutos. Vê como esse ninho está em um lugar que é difícil de ver de cima? A maioria dos ninhos de Kayanosuzukuris são bem expostos.

— Você também pode ver pela forma que as beiradas do ninho são. — Shun complementou. — Toutinegras ficam na borda para cuidar dos filhotes, então as beiradas são amassadas, enquanto as Kayanosuzukuri deixam do jeito que está quando terminam, então as beiradas são pontudas. Além disso, as toutinegras às vezes usam as próprias penas para fazer o ninho. Obviamente, os ninhos de Kayanosuzukuri não tem nenhuma pena.

Como garotos frequentemente usavam ovos de Kayanosuzukuri para pregar peças nas pessoas, não era surpresa que tinham tanto conhecimento sobre isso. Mesmo que nenhum de nós nos interessássemos nessas coisas.

Fizemos uma anotação de onde achamos o ninho junto com uma ilustração simples dele, e continuamos nosso caminho, ficando de olho em mais.

O acampamento de verão não era só diversão e jogos. Era parte da nossa tarefa no curso de ciência, então cada grupo tinha que fazer uma pesquisa durante o acampamento, e apresentar quando voltassem. A nossa era um tópico bem vago chamado “Espécies ao redor do Rio Tone”. Antes de sairmos, tivemos uma discussão calorosa sobre o que deveríamos escrever sobre, e apenas acabamos concordando em um ponto inicial (não é era o suficiente?), quando Satoru começou a contar um de seus contos como exemplo.

— Cães-Balão? — Eu ri sem parar. — É impossível algo assim existir.

— Estou falando, são reais. — Satoru disse com um rosto completamente sério.

Como Satoru sempre reagia tão na defensiva quando duvidavam dele, nós constantemente ríamos das coisas que ele dizia, apenas para provocá-lo. Nós normalmente apenas acreditávamos em metade das histórias dele de qualquer forma, mas nesse momento, ele estava sendo muito exagerado.

— Algumas pessoas têm os visto recentemente.

— Tipo quem? — Maria perguntou.

— Não sei os nomes.

— Viu, é igual sempre. Ele insiste que têm testemunhas, mas quando você pergunta um nome, ele fica vago do nada. — Eu disse triunfante, mas Satoru me ignorou e continuou. Por que ele gostava tanto de enganar as pessoas?

— Se você ouvisse seu nome, provavelmente saberia quem é. Ele disse que encontrou um cão-balão na base do Monte Tsukuba.

— Por que ele foi até o Monte Tsukuba? — Maria foi fisgada pela história de Satoru, esquecendo do problema de quem seria essa testemunha.

— Um trabalho para o Conselho de Educação, como uma enquete ou algo assim. Eles obviamente não contam para as crianças todos os detalhes. De qualquer forma, quando ele chegou perto da montanha, um cão-balão saiu desajeitado de uma caverna.

Quando eu comecei a procurar buracos na história de Satoru, Mamoru falou.

— Como eles eram?

— Eram do tamanho de cachorros, completamente pretos, com um torso gordo. A cabeça era quase da metade do tamanho da de um cachorro normal e era suspensa até tão baixo que quase tocava o chão.

— Isso é mesmo um cachorro?

— Quem sabe, pode não ser.

— Não parece muito perigoso. — Maria disse.

— Sim. Mas se ficar bravo, o corpo infla como um balão para avisar o inimigo a ficar longe. Mas se o provocarem ainda mais...!

— Ele infla mais e mais até explodir, certo? Isso não pareceu meio idiota para você? — Eu interrompi, mas Satoru trocou de tática em um instante.

— Mas esse é o problema.

— Huh?

— Isso não desafia completamente o senso comum? Se você quisesse enganar um monte de pessoas, você iria criar algo mais acreditável, certo?

Várias objeções vieram em minha mente, mas fiquei quieta. Se dissesse algo, significaria que eu estava aceitando a história ridícula dele.

Ainda assim, parecia que Satoru sentiu que tinha me comprado.

— Eu ouvi que cães-balão são mensageiros de deus, mas eles parecem animais normais para mim. Há vários animais que tentam se parecer maiores quando provocados, cães-balão são só um exemplo extremo. Quando ele explode, o inimigo provavelmente acaba morto, ou pelo menos muito machucado. — Ele disse.

Shun, que tinha ouvido silenciosamente até então, falou. “Ainda assim, soa inacreditável.”

— Por quê? — Satoru perguntou taciturnamente.

— Porque se isso realmente acontecesse, os cães-balão não iriam morrer antes de seus inimigos? Eles seriam extintos rapidinho.

Era um ponto simples, mas irrefutável. Satoru cruzou os braços e fingiu contemplar o problema, mas eu tinha certeza que ele não conseguiria pensar em mais nada.

Bem quando parecia que eu estava certa, ele começou a falar como se nunca tivesse pausado a conversa.

— ... mhm. Depois dele encontrar o cão-balão, ele também viu um Minoshiro do mal.

Eu quase caí de minha cadeira. “O que você quer dizer com ‘hmh’? Alô? O que aconteceu com o problema do cão-balão?”

— Ele foi embora quando o viu inchando, então não explodiu. Mas quem sabe, talvez toda a coisa dele explodir seja falsa, de qualquer forma. — Satoru disse, tentando arrastar a conversa como um lagarto balançando o rabo. — E então enquanto ele escalava o Monte Tsukuba, ele encontrou um Minoshiro do mal. — Ele arregalou os olhos mostrando surpresa.

— Isso é igual um falso Minoshiro? — Mamoru perguntou.

— Sim, à primeira vista parece um Minoshiro, mas se olhar cuidadosamente, são completamente diferentes.

— Mas por que é do mal? — Maria perguntou, carrancuda.

— Pessoas que encontram o Minoshiro do mal morrem logo depois.

Que absurdo.

— Então como aquele cara morreu? Ele não morreu, né?

— Ele provavelmente vai logo. — Satoru disse, sem pisar os olhos.

Se abandonássemos o assunto aqui, seria como qualquer outra vez que Satoru contou uma de suas histórias inúteis. Mas Shun fez uma proposta surpreendente.

— Por que não fazemos isso para nosso relatório do acampamento de verão?

— O Minoshiro do mal? — Eu estava surpresa.

— Ele, os cães-balão, e outras criaturas. É uma oportunidade rara, então quero descobrir se eles existem ou não.

— Parece interessante. — Maria e o resto concordaram imediatamente.

— Esperem, pessoal, vocês entendem o que estão dizendo? Se encontrarem um Minoshiro do mal, vão morrer.

Como esperado, Satoru estava tentando ao máximo nos dissuadir da ideia, com medo que suas mentiras fossem expostas.

— Ninguém vai morrer. — Maria riu.

— Mas como vamos pegar um? Eu esqueci de mencionar, mas o cantus não funciona neles.

— O que quer dizer?

Quem vai saber o que ele estaria falando só pelo desespero. Todos viramos para olhá-lo.

— Hm, não tenho certeza.

— Explique mesmo assim.

— ...

No fim, Satoru se rendeu para as nossas perguntas. Então o tópico da nossa pesquisa no acampamento foi decidido.

Mas pensando racionalmente, não existe a possibilidade de você encontrar tantos animais raros. Então decidimos manter o tema original vago, “Espécies ao redor do Rio Tone”, para que caso não conseguíssemos encontrar nada, poderíamos escrever sobre um Minoshiro normal, Kayanosuzukuris, e coisas assim.

Vamos voltar ao acampamento de verão. Nem dez minutos depois de encontrarmos o ninho de toutinegras, eu soltei um pequeno grito.

— Olhem! Tem um ninho gigante ali.

Por algum motivo, Shun levantou a sobrancelha duvidoso. “Parece de uma Água-mãe amarela.”

— Sim. Provavelmente uma que é grande. — Satoru concordou.

Era raro que tivessem a mesma opinião, o que de alguma forma fez isso soar mais acreditável.

— Mas está construído meio brutalmente.

As três canos convergiram ao redor do ninho. Estava bem mais baixo do que o ninho de toutinegra, mas era bem exposto em algumas áreas. Qualquer animal com uma visão afiada conseguiria ver da margem oposta.

Shun levantou um pouco de seu assento e espiou o ninho. “Têm cinco ovos.”

Meu coração acelerou momentaneamente quando meu ombro roçou no de Shun quando nossos barcos pararam lado a lado. Eu fingi estudar os ovos e o ninho cuidadosamente. As Água-mãe amarelas são as menores na família das garças, mas ainda bem maiores que uma toutinegra de tamanho de pardal. Seu ninho era quase o dobro do tamanho, e os ovos eram como miniaturas azuladas de ovos de galinha.

Shun tirou um ovo do ninho e o observou com cuidado. Seu queixo caiu.

— Uau, isso é surpreendente. Mesmo que eu já esperasse um pouco.

— O quê?

— Saki, segure.

Ele pegou o ovo entre dois dedos finos e deixou-o na palma da minha mãe. Pareceu agradavelmente fresco, como cerâmica.

— O que tem de errado?

— Não percebeu? — Ele pegou outro ovo e jogou para Satoru.

Eu estava surpresa no quão grosseiramente ele os estava tratando. “Espere, o que está fazendo? Coitados dos pintinhos.”

— Ahh. — Shun esboçou um sorriso. — São falsos. Olhe mais perto.

Ele pegou outro e mais um e colocou no topo de uma pedra próxima. Antes que eu pudesse pensar, ele o esmagou com um remo.

A casca fraturada, sem revelar nenhuma gema ou clara, mas um arvoredo preto e fétido. Surpreendentemente, estruturas em formato de chifres começaram a florescer dele, indo para todas as direções.

— O que é isso?

— Mão do Diabo. Você já ouviu falar, né?

Na verdade, eu não tinha. Eu belisquei um espinho com a ponta do meu dedo, e parecia fino como papel.

— Tenha cuidado, as pontas são bem afiadas.

A Mão do Diabo tinha veias vindo de seu âmago, dando elasticidade. E como Shun havia dito, era afiado, com farpas saindo das extremidades.

— Normalmente está dobrado dentro do ovo, mas quando a casca quebra ele começa a explodir.

— Por quê?

Satoru respondeu atrás de mim. “Se uma cobra de ratos ou cobra rosa comê-los, o ovo vai explodir no estômago. E quando ela tentar regurgitar, as farpas vão se prender mais no estômago e eventualmente rasgá-lo. Então o veneno dentro da parte preta fedida vai vazar para o corpo da cobra.”

Que macabro. Cobras rosa se desenvolveram para comer ovos exclusivamente, então atacavam ninhos e comiam todos os ovos de uma vez, os digerindo depois. Seu nome vem pela forma que parecem depois de terem se empanturrado de ovos. Se um comesse vários ovos falsos, eu posso imaginar o quão terrível seria depois.

Os ovos não traziam vida, mas morte certa.

Eu peguei meu caderno e fiz um pequeno esboço do ovo falso.

— Há vários ovos falsos de toutinegra em Matsukaze, mas é a primeira vez que vi um ovo falso de Água-mãe. — Satoru disse admirado, segurando o ovo falso para o sol.

— Para soltar um ovo desse tamanho, deve ser um pássaro bem grande, certo?

— Não. É do mesmo tamanho de uma Kayanosuzukuri. — Shun disse.

— Como sabe? — Satoru olhou para ele.

Shun apontou o queixo para algo em nossa frente. O que vimos nos surpreendeu.

Havia uma pequena face nos espiando do matagal de juncos. Pareia a de uma garça, com o bico cheio de mato seco. Mas seus olhos eram vermelhos e sem pálpebras, escamas cobriam seu rosto, e linhas pretas corriam doas cantos de seus olhos fazendo se tornar obvio que não era um pássaro.

A Kayanosuzukuri lentamente se mostrou, deslizando por um caule grosso. A maioria das Kayanosuzukuri eram pretas ou de marrom esverdeado, mas essa era verde claro, como um filhote. Apesar de seu bico ser quase idêntico ao de um pássaro, você podia dizer que o resto não tinha mudado muito de seu predecessor, a cobra amarela.

Estava construindo um novo ninho, habilmente colocando os juncos de sua boca em vários lugares ao redor do ninho. O ninho de água-mãe era construído entrelaçado aos talos de junco, mas os ninhos de Kayanosuzukuri eram como os de uma toutinegra. Pareciam similares o suficiente para enganar.

— O ovo falso pode ter sido da Kayanosuzukuri, já que elas têm o hábito de construir vários ninhos na mesma área.

Eu olhei para Satoru e o vi colocando o ovo falso em sua mochila. Havia apenas um sobrando no ninho.

— O que você está fazendo com isso? — Maria perguntou.

— Caso não encontramos um cão-balão ou um Minoshiro do mal, podemos escrever sobre isso para nosso relatório de acampamento. Ovos falsos que parecem ovos de água-mãe são bem raros.

— Mas levá-los não seria ruim para a Kayanosuzukuri?

— Como são falsos, deixar um deve ser o suficiente. Contanto que o ninho não fique vazio, deve ficar tudo bem.

A teoria de Satoru parecia boa, mas se fosse o caso, a Kayanosuzukuri não botaria apenas um ovo para começar?

De qualquer forma, pensei que a cobra de rosto curioso era mais astuta do que achávamos.

A estratégia para sobrevivência da Kayanosuzukuri era parasitismo de ninhada.

Parasitismo de ninhada envolvia o pai parasita botando o ovo no ninho de outro animal. O ovo racha rapidamente, e o animal empurra os ovos originais para fora do ninho. Para mim, essa é provavelmente a coisa mais cruel a se fazer para outros animais para sobreviver. Na África, há um tipo de pássaro chamado de Guia-do-mel, e seus pintinhos nascem com ganchos em seus bicos para matar os pintinhos no ninho do hospedeiro.

De acordo com o “A História Natural das Novas Ilhas do Japão”, mil anos atrás, só havia algumas espécies de cucos que eram parasitas de ninhadas. Mas agora, só na área em que estávamos (mesmo que houvesse animais que realmente cuidassem de seus filhotes, a maioria estava procurando por um ninho para invadir). O mundo dos pássaros era uma batalha sem fim.

(A Kayanosuzukuri monta ninho e ovos falsos bem convincentes, e espera os pássaros caírem em sua armadilha. Periodicamente ela patrulha os ninhos, procurando por novos tributos.)

Eu lembrava do modelo de esqueleto da Kayanosuzukuri que vi em nossa aula de ciência. Para esmagar os ovos, sua vértebra pré-caudais eram mais grossas que das outras cobras, quase como uma linha de molares. Ela reutilizava os ovos esmagados como material para seus próprios ovos. Por causa do grande aglomerado de cálcio em seu corpo, os ovos que ela bota são duros, como ovos de aves, então Kayanosuzukuris bebês precisam quebrar para poder nascer.

Mas eu nunca soube que ela usava a Mão do Diabo como defesa contra cobras de ratos e cobras rosa até então. Talvez estivesse dormindo quando o professor nos ensinou.

Isso pode ter sido inventado em retrospecto, mas eu lembro de ter me sentindo desconfortável naquele momento. Era um exemplo real da adaptação e da seleção natural mencionadas em nosso livro. Para sobreviver, até algo como a Mão do Diabo podia ser desenvolvida.

Mas enquanto íamos para o Rio Tone novamente, todas minhas questões e preocupações foram levadas embora pela brisa relaxante.


Quando o dia chegou ao fim, nós desviamos nossas canoas para a margem e fomos para a terra. Ainda havia traços fracos do grupo que saiu antes de nós.

A primeira tarefa era montar as tendas. Nós fizemos buracos para os mastros de sustentação de bambu, e amarramos o toldo a eles com tiras de couro. Foi um trabalho surpreendentemente cansativo. O jeito mais fácil era ter uma pessoa segurar os mastros e o toldo, e outra pessoa os posicionar corretamente.

Em seguida era a preparação da comida. Tínhamos mais de três quilos de suprimentos em nossas canoas, então havia muita comida. Nós juntamos galhos secos e gravetos próximos e acendemos uma fogueira com nosso cantus. Em uma panela, colocamos água purificada, arroz, vegetais, carne, tofu e outras comidas para fazer mingau de arroz. Mesmo que os únicos temperos que tínhamos fosse sal e missô, todos tinham um apetite gigante e devoraram a panela inteira em um piscar de olhos.

O sol havia se posto enquanto estávamos comendo, e agora estávamos sentados conversando ao redor da fogueira.

Aquela cena ainda está queimada vividamente em minha mente. Eu estava cansada depois de um dia inteiro de atividades e a fumaça da fogueira estava fazendo meus olhos lacrimejarem. Como essa era nossa primeira grande aventura do lado de fora da Barreira Sagrada, estávamos mais espirituosos que o normal. Enquanto o céu desbotava de pálido para azul escuro, o fogo iluminava nossas faces com um brilho avermelhado.

Para falar a verdade, eu não consigo lembrar a primeira metade de nossas conversas. Eu lembro de nossas conversas de dia perfeitamente bem, mas os tópicos mais interessantes que discutimos naquela noite continuam a fugir de mim. Como se essas memórias tivessem sido lavadas.

Naquela época, eu estava completamente concentrada no garoto do outro lado da fogueira.

— ... Você nunca viu antes, né Saki? — Satoru disse do nada.

O que ele estava falando que eu nunca vi antes? De qualquer forma, eu só dei uma resposta vaga.

— Oh, quem sabe.

— Huh? Então você viu?

Eu não tinha escola a não ser balançar minha cabeça.

— Viu, não tem como. — Satoru disse assertivamente.

Eu quis o refutar, mas como não sabia do que ele estava falando, não havia nada que eu pudesse fazer.

— É... É mesmo! — Satoru de repente ficou muito agitado. — No outro dia, Shun e eu vimos pela primeira vez, certo?

Através das chamas, eu vi Shun concordar. Eu não lembrava quando aqueles dois tinham ficado próximos.

— Deve ser algo importante, para ser tão bem protegido.

— Parece que sim. De qualquer forma, eu não acho que algum de nós tenha conseguido ver quando estávamos na Escola da Harmonia. — Shun disse em sua voz calma, sorrindo ligeiramente. — Há uma parede bem atrás da porta, então mesmo que a abra, ainda não vai dar para ver o pátio interno. E os professores sempre são muito cuidadosos em abrir e fechar a porta.

Isso significava que eles realmente foram para o pátio? Eu estava surpresa com a ousadia. O pátio interno era um quadrado rodeado por prédios de todos os lados, como o da Escola da Harmonia, e apesar dos alunos não serem proibidos de entrar, não havia nenhuma janela que desse para lá e as pessoas não queriam entrar.

— Mas duas vezes eu consegui espiar enquanto o Príncipe do Sol estava abrindo a porta. E a imagem dos parafusos do lado de dentro está marcada na minha mente.

Como fechaduras iriam se parecer daqui a mil anos? Eu não consigo imaginar. Elas eram apenas peças de metal com entalhes, e gradualmente ficaram tão sofisticadas como as engrenagens de um relógio. Mas na nossa época, havia poucos lugares que precisavam de fechaduras, então o design delas tinha se tornado bem simples novamente.

Do lado de dentro da porta havia uma dúzia de pequenos parafusos, organizados radialmente. Você não conseguia ver onde eles estavam do lado de fora, então a única forma de destrancar a porta era ter uma imagem com todos os locais marcados ou lembrar de memória, e destrancar com seu cantus.

— ... E então, eu fiquei de olho enquanto Shun destrancava a porta. Nós entramos e fechamos a porta. Segurando a respiração, fomos para a segunda parede. — Satoru pausou para um efeito dramático, olhando para nós.

— O que havia lá? — Maria perguntou.

— Adivinhe. — Satoru sorriu.

— Não tem mais túmulos no pátio da Escola da Harmonia? — Eu disse.

O olhos de Mamoru se arregalaram, não tendo ouvido a história de antes. “O quê? Há túmulos lá?”

— Não, foi só uma história que ouvi.

— Pare de tentar ser misterioso. O que tinha lá?

— ... basicamente o mesmo que eu havia visto na Escola da Harmonia. — Shun respondeu. — Há algumas plantas, mas a maior parte do pátio está vazia. No final está uma linha de armazéns de tijolos com portas pesadas de madeira.

— Você olhou lá dentro? — Maria perguntou.

— Nós íamos, mas voltamos. — Satoru disse.

— Por quê?

— Tinha um cheiro muito nojento vindo delas, então não quisemos abrir.

Como Satoru sempre estava contando histórias exageradas com vários detalhes supérfluos, ouvi-lo dizer algo vago assim me fazia ficar mais interessada.

— Que cheiro nojento?

— Um cheiro bem forte... tipo amônia.

— Então era banheiros?

Satoru não respondeu a minha piada.

— Não só isso. Não tenho certeza, mas eu achei ter ouvido vozes vindo de lá também. — Shun disse.

— Que tipo de vozes? — Eu perguntei, mesmo que estivesse ficando assustada.

— Não sei, mas pareciam choros de animais.

Essa tinha que ser uma história feita para nos assustar. Mas mesmo pensando isso, um arrepio correu pela minha espinha. Não falamos mais sobre isso pelo resto da noite.

Como tínhamos que acordar cedo no dia seguinte, deveríamos ter ido dormir, mas queríamos um pouco mais de aventura. Do nada, Mamoru sugeriu que fossemos fazer canoagem noturna. Maria concordou rapidamente.

No começo, eu estava um pouco apreensiva sobre remar no rio só com as estrelas para nos guiar. Era um medo instintivo de não conseguir ver o que estava ao meu redor.

Mas teria sido muito pior ser a única deixada sozinha, então decidi participar. Nós tiramos no palito para ver quem ficaria para trás para cuidar do fogo, porque se apagasse, estaríamos perdidos na escuridão.

Eu esqueci de mencionar que tínhamos nomeado nossas canoas. A minha e a de Satoru era Sakuramasu (Salmão) 2, a de Maria e Mamoru era Hakuren (Carpa prateada) 4, e a de Shun era Kamuruchi (Peixe Cabeça-de-Cobra) 7. Marcamos os palitos para sorteio com a ponta afiada de um anzol e sorteamos. Shun e eu ficamos juntos em Hakuren 4, e Maria e Mamoru em Sakuramasu 2. Infelizmente para ele, Satoru foi deixado para guardar o local.

— Isso é sacanagem. — Satoru reclamou, não sabendo quando desistir. Ele sempre disse que o último do sorteio seria o mais sortudo, e isso era o que ele tinha recebido. — Você poderia ver o diferente se olhasse na lata!

— Claro, mas ninguém olhou. — Maria respondeu calmamente.

Na verdade, não havia necessidade de olhar no fundo. Se prestasse atenção, poderia ver que os palitos marcados e não-marcados estavam um pouco diferentes.

Satoru sentiu perto do fogo resmungando enquanto deixávamos o acampamento.

— Não olhe para o fogo. — Shun disse.

— Por quê?

— Ninguém nunca te disse? É a regra número um da canoagem noturna. Você tem que ter seus olhos ajustados à escuridão o mais rápido possível, ou não verá nada.

Shun entrou na canoa primeiro e se virou para me puxar. Meu coração disparou e eu esqueci tudo sobre estar assustada ou com medo de me perder no rio escuro.

A canoa deslizou silenciosamente pela noite.

Não ser capaz de enxergar nada nos deixou preocupados em usar nossos canti, então remamos com os remos por algum tempo.

Mesmo depois de meus olhos se ajustarem, ainda era difícil de ver. O rio refletia apenas as luzes das estrelas, e todo o resto era escuridão. O único som vinha dos pequenos respingos de nossos remos.

— Parece que estou em um sonho. — Eu sussurrei. — Assim, é difícil de dizer o quão rápido estamos indo.

— Você pode perceber se colocar a mão na água. — Shun disse de trás.

Eu parei meu remo e escorreguei meus dedos na água. A água fluía rapidamente por eles.

De algum lugar longe acima, a risada de Maria veio ecoando. Por conta do silêncio da noite, ou da quietude da água, o som viajava muito mais longe do que durante o dia.

Shun parou de remar e trouxe o remo de volta para o barco.

— O que houve?

— Se continuar remando, sempre vai ter ondulações na água, certo...? — Ele parecia estar olhando para a água.

Eu me virei e vi o fogo do acampamento. Havíamos viajado por uma boa distância através do rio.

— Sim, mas é um rio, então sempre vai ter algumas ondas.

Shun entoou seu mantra. “Pronta? Eu vou planar a superfície.”

Uma ondulação se espalhou de nosso barco, e as ondas desapareceram.

— Uau, é incrível.

Era como se a água estivesse congelada. Qualquer imperfeição tinha sido amaciada e a superfície parecia vidro polido, um enorme espelho refletindo cada estrela do céu.

— Lindo. Parece que estou no espaço.

Eu lembraria dessa noite até o dia que morresse.

Hakuren 4 flutuou não em um rio, mas na Via Láctea.

Uma voz veio viajando pelo vendo, de longe. A voz de Satoru. Eu olhei para trás e mal podia ver o fogo.

— Devemos voltar? — Shun perguntou.

Eu balancei minha cabeça silenciosamente.

Eu queria ficar ali mais um pouquinho. Com Shun, nesse mundo perfeito.

Nossa canoa deslizava entre o céu estrelado. Eu me inclinei em minha mão direita para aproveitar a vista.

Após algum tempo, eu senti a mão de Shun, seus dedos esguios cobrindo os meus.

Eu queria que o tempo parasse. Apenas Shun e eu, conectados assim para sempre.

Eu não sei quanto tempo ficamos assim. O que me trouxe de volta para a realidade foi a voz de Satoru vindo de longe. Parecia que ele estava entrando em pânico porque ninguém voltava.

— Vamos lá. — Shun disse.

Desta vez, eu concordei. Seria ruim deixar Satoru sozinho por muito tempo.

Nós viramos o barco. Shun usou seu cantus para nos fazer subir o rio, e as estrelas se espalharam em ondas.

Bem quando estávamos atingindo uma velocidade confortável, eu fui cegada por uma sensação de inquietude.

O quão rápido estávamos indo?

O rio e suas margens se derreteram na escuridão, me deixando completamente incapaz de reconhecer qualquer coisa.

(Em uma situação em que nossos sentidos falhem, mesmo ter os poderes divinos do cantus não pode dispersar nossa inquietude.)

Então, um pensamento veio até mim.

Se nos privássemos de nossos sentidos, ainda seríamos capazes de usar nossos canti?

Então, seguindo isso.

Por que ninguém que havia perdido a visão ou a audição vivia em nossa cidade?

Capítulo 06

“A História Natural das Novas Ilhas do Japão” escreve que ao longo dos anos, um número de historiadores, biólogos, e linguistas se intrigaram com a etimologia do nome “Minoshiro”, e surgiram com algumas teorias interessantes.

Uma explicação antiga aceita era de que o nome veio do fato de que ele parecia que vestia uma capa de chuva. Mas o livro não dizia que tipo de capa de chuva, e eu nunca vi uma antes, então não faço ideia se a explicação era correta ou não.

Outro motivo vinha em partes por parecer vestir uma capa, e parcialmente por sua cor branca, combinada com a crença de que as almas dos mortos viviam dentro dele. Além disso, o fato de que o Minoshiro é normalmente terrestre, mas retorna para o mar para botar ovos era uma origem plausível de seu nome. Uma explicação mais recente era de que os ovos vermelhos e amarelos que ele colocava em moitas de algas ou corais lembravam ornamentos no palácio do Rei Dragão.

Outro motivo não-oficial vinha do fato de que quando se encontrava com o inimigo, o rabo do Minoshiro se eriça e levanta, como um shachihoko encontrado nos tetos de castelos no passado ancião. Eles o nomearam pelo castelo em Mino, mas uma pesquisa posterior mostrou que era o castelo de Nagoya que tinha um shachihoko, que ficava na província vizinha de Owari. Depois dessa descoberta, a explicação perdeu seu encanto.

Há também inúmeras histórias que dizem que o “shiro” é o nome Shirou encurtado. Como Shirou era apenas pouco maior que um metro de altura, ele foi chamado de Minoshiro (“mino” é três vezes o comprimento de um pano de largura padrão, cerca de 108 centímetros). Uma história diferente disse que uma vez ele encontrou uma criatura do tipo cobra com vários tentáculos, que também deu a ele o nome de Minoshirou. As histórias são variadas e difíceis de compreender.

Ainda no tópico de Shirou, um folclore antigo dizia que ele era amaldiçoado por uma cobra branca e transformado em um Minoshiro. Como outros detalhes da história se perderam, não tem como provar sua autenticidade.

Pessoalmente, eu acho que todas as histórias são possíveis. Ao menos é muito mais fácil de entender se comparado a etimologia do nome dos sapos que ficam no Monte Tsukuba. No livro diz que “eles usam seu poder para atrair e devorar insetos”. Quem acreditaria na ideia de que sapos possuem canti?

Outro mistério sobre o Minoshiro é que ele não era mencionado nos textos mais anciãos. Mesmo que vários dos textos de mais de mil anos atrás sejam proibidos, a palavra “Minoshiro” não é encontrada nos textos disponíveis. Isso significa que o Minoshiro foi descoberto dentro dos últimos duzentos anos, mas uma criatura inteiramente nova sendo evoluída em tão pouco tempo é impensável.

Na verdade, não é apenas o Minoshiro. Nos anos entre a civilização de mil anos atrás e hoje, houve uma extinção em massa da fauna. As espécies antigas serem extintas é incomum, mas não inesperado, o que era surpreendente era a aparição súbita do Minoshiro e de outras espécies, como se tivessem surgido do nada.

Uma hipótese que procura explicar esse fenômeno tem ganho atenção ultimamente. Ela diz que sua evolução foi impulsionada pelo inconsciente coletivo humano.

Mas isso parece um pouco extremo. Apenas recentemente, foi determinado que o Minoshiro descendia diretamente de uma espécie de lesma marinha chamada de Anteaeolidiella Indica que vivia na região de Boso. Apesar de ser difícil de imaginar uma lesma marinha de trinta centímetros evoluindo par alto grande como um Minoshiro, quando você olha para as guelras salientes que parecem capa de chuva, você deve admitir que tem uma semelhança. Se a lesma marinha realmente é ancestral do Minoshiro, e eles dividem o mesmo nome[7], então essa é uma evidência que ajuda as duas primeiras teorias que foram mencionadas anteriormente. Mas eu acho que mais pesquisa é necessária.

O motivo de eu estar mencionando tudo isso nessa ordem é que para entenderem o que estarei falando quando chegar a parte que conhecermos o falso Minoshiro durante nosso acampamento de verão, você precisa saber o que é um Minoshiro de verdade.

Como o Minoshiro não existia mil anos atrás, é possível que não existam daqui a mil anos também. Então apesar de já ter literatura sobre o Minoshiro, eu ainda quero explicar novamente aqui.

Seu comprimento varia de dez centímetros a um metro, os menores são do tamanho de uma mandarová-do-fumo, enquanto os maiores são tão longos como uma centopeia. Eles têm uma grande antena em formato de Y em suas cabeças, e duas antenas menores no final dela. Seus olhos são pequenos e cobertos de pele, então é presumido que eles apenas detectam luz e escuridão. Os Minoshiro têm pernas curtas como as de um mandarová-do-fumo ou de uma centopeia (essa característica os faz parecer diferentes de gastrópodes como a lesma marinha), e podem andar a uma boa velocidade. O movimento de suas inúmeras pernas é reminiscente a uma marcha militar. Há penas coloridas e meio transparentes em suas costas que brilham nas pontas.

Minoshiro são onívoros e comem principalmente musgo, líquen, fungos, vários insetos, e sementes. Eles não são afetados por venenos, separando-o da comida e armazenando em seus corpos. Por causa disso, os Minoshiro indiretamente limpam o solo. Seus corpos também mudam de cor dependendo do que eles tenham comido. Isso pode ser visto mais obviamente depois de uma refeição de musgos, quando se tornam verde claro. Essa característica também é vista nas lesmas marinhas após comer anêmonas do mar.

Quando um Minoshiro é ameaçado, ele levanta e chacoalha as penas em suas costas para intimidar os predadores. Se o predador continuar a avançar, ele será atingido com as penas, que são cheias de um veneno mortal. Algo importante de se mencionar é que eles nunca ameaçaram humanos dessa forma.

As espécies de Minoshiro incluem o Minoshiro gigante (um tipo raro com o comprimento de seu corpo sendo maior de dois metros e coberto com pelos cinza), o Minoshiro vermelho (com corpos vermelhos meio transparentes), o Minoshiro azul (com antenas azuladas nas pontas), Minoshiro arco-íris (coberto com pelos finos similares às escamas pulverulentas das borboletas, e refletem a luz como besouros de joias), e várias subespécies.

Seu tamanho e gosto extremamente desagradável devido ao veneno em seus corpos significam que o Minoshiro não tem quase nenhum inimigo natural. Seu único predador é o caranguejo-tigre, que espreita embaixo das praias arenosas. A maioria dos casos de um Minoshiro ser caçado por caranguejos-tigre parecem ocorrer na época que eles fazem sua migração para a praia para botar ovos.

Para ser completamente clara, deixe-me fazer uma breve introdução sobre os caranguejo-tigre. Eles são carnívoros ferozes descendentes do caranguejo-nadador, com cascos afiados e em forma de diamante, de quarenta e cinco a cento e vinte centímetros de largura, coloridos para se misturar na areia, pinças grandes, três espinhos em suas cabeças, e arestas serradas na frente de seus cascos. Suas pernas traseiras são úteis para nadar e para escavar na areia. Os caranguejo-tigre são capazes de pular até dois metros para fora da areia para capturar sua presa. Estão comumente na praia de Hasaki, mas também podem ser encontrados em prados, florestas e montanhas. Eles comem de tudo, desde sapos, lagartos, cobras e pequenos mamíferos até aves marinhas, golfinhos encalhados, baleias e outras criaturas marinhas. Seus cascos pesados são quase impenetráveis, apesar de que quando os caranguejo-tigre se encontram, eles lutam até a morte, e canibalismo é comum. Apesar de sua natureza viciosa, não são considerados uma ameaça para humanos.

É dito que o Minoshiro pode atomizar partes de seus corpos para escapar dos caranguejo-tigre, além de fazer outras coisas interessantes que ainda não vi.

Quanto a primeira parte, eu já a vi antes, bem inesperadamente. Foi durante o início do verão no ano que nos graduamos da Escola da Harmonia.

— Saki, olhe lá! — Maria chamou silenciosamente.

— O que foi?

Estávamos em uma pequena clareira escondida por matagais sobre a praia. Nós duas frequentemente íamos para lá depois da aula se o tempo estivesse bom.

— Um Minoshiro foi pego por um caranguejo-tigre...

Eu tirei levantei minha cabeça por cima dos arbustos e respirei o ar salgado. A praia estava deserta. Olhando para onde Maria estava apontando, eu vi um único Minoshiro na areia a cerca de vinte ou trinta metros de distância do oceano. Estava se debatendo como se quisesse ir para a água, mas havia sido preso no lugar.

Olhando cuidadosamente, vimos que suas pernas haviam sido presas entre pinças verde escuras.

— Temos que ajudá-lo. — Eu pulei, mas Maria me puxou para baixo.

— O que está fazendo, idiota? E se alguém te ver?

— Não tem ninguém aqui.

— Você não sabe quando vai ter, certo? Aquele é o lugar que os garotos vão pescar.

Realmente, correr pelada pela praia não era algo que se fizesse normalmente, então colocamos nossas roupas e corremos para lá. Ao nos aproximarmos, o corpo camuflado do caranguejo-tigre se revelou. Tinha as pernas do Minoshiro em uma pinça, penas na outra, e estava olhando para ele como se contemplasse como deveria comê-lo.

Eu hesitei. Mesmo que fosse só um caranguejo, caranguejos-tigre eram conhecidos por enfrentar ursos adultos e matá-los. Era dito que não atacavam humanos, mas para duas crianças que ainda não tinham seus canti, era impossível fazer qualquer coisa.

Até então, eu não havia rezado para alguém aparecer e nos ajudar. Querido deus, se não for o Shun, pelo menos o Satoru...

— E agora? Podemos tentar jogar areia nele?

Eu estava prestes a ter um ataque de nervos, mas Maria estava lidando com a situação calmamente.

— Espere. Está tudo bem, ele está lutando de volta agora.

O Minoshiro começou a acariciar as pinças do caranguejo-tigre com suas penas, como se tentasse acalmá-lo. O caranguejo-tigre lentamente parou de se mover, com bolhas saindo de sua boca.

Do nada três penas brotaram das costas do Minoshiro, e começaram a balançar como se gesticulassem para o caranguejo-tigre. As penas atomizaram e caíram na areia, ainda se contorcendo.

O caranguejo-tigre continuou sem se mover, ainda segurando no Minoshiro e espumando pela boca.

Ainda se contorcendo de dor, o Minoshiro levantou mais duas penas, as balançou na frente do caranguejo-tigre, e deixou-as cair no chão.

Agora havia cinco penas se contorcendo na areia. O caranguejo-tigre não respondeu, e o Minoshiro ficou parado.

Meio minuto depois, o Minoshiro voltou a se mover, mas agora com hostilidade.

Com suas penas soltas começou a bater no casco do caranguejo-tigre. Uma vez, duas vezes, três vezes. Na quarta vez, ele levantou uma única pena venenosa, enrijecendo-a com toda a sua força, e a atomizou. Ela atingiu as pinças do caranguejo-tigre ao cair.

O caranguejo-tigre perdeu o controle. O Minoshiro se soltou e foi para o mar aberto.

Ignorando o Minoshiro, o caranguejo-tigre pegou duas das penas na área e começou a comê-las.

— Bem, parece que ele conseguiu. — Maria disse.

Ela estava sorrindo, mas parecia mais uma careta. Maria não gostava muito de animais, e na realidade provavelmente não se importava com o Minoshiro, mas fingiu que sim, por mim.

— Mas ele perdeu seis penas, tadinho.

— É um preço pequeno por sua vida, não é? Caso contrário, teria sido comigo.

Quando um Minoshiro não consegue escapar de um caranguejo-tigre, ele solta penas como iscas, torcendo que o caranguejo-tigre deixe-o ir para comer as penas. Há um fenômeno interessante que ocorre aqui que não é visto em outros animais: barganhar. Quantas penas o Minoshiro está disposto a soltar é uma função entre sua capacidade física e o quão faminto o caranguejo-tigre está.

No caso da negociação não funcionar, o Minoshiro começa a atacar com suas penas. O caranguejo-tigre provavelmente pode ganhar do Minoshiro, mas se uma pena escorregar nos vãos entre o casco no processo, há uma boa chance de que ele morra.

Este comportamento racional é surpreendente para as duas espécies que não são particularmente inteligentes. Mas para o caranguejo-tigre, soltar o Minoshiro após ele soltar suas penas é provavelmente apenas senso comum.


Vamos voltar para o acampamento de verão.

Na manhã seguinte, nós decidimos fazer Oniguiris para o almoço com nossos equipamentos bagunçados. Então desfizemos as barracas, preenchemos os buracos dos bastões, cobrimos os traços de nossa fogueira, juntamos tudo novamente em nossas canoas e saímos.

Viajamos pelo rio entre a névoa da manhã, usando nossos remos e nossos canti. Na esquerda podíamos ouvir os chamados frequentes dos pássaros, o choro alto e esticado da campainha do prado.

O céu estava nublado desde que acordamos, o que era uma pena, mas respirar o ar fresco da manhã tirou todo sono que eu tinha.

Esta parte do rio era bem mais larga do que a que estávamos ontem. A margem direita era um mormaço distante e completamente escondida pela névoa.

Eu lembrei das aulas de geografia na Escola da Harmonia, onde aprendíamos sobre a transição entre a entrada de Kasumiga e o Rio Tone.

Dois mil anos atrás, a Entrada de Kasumiga era um gigante mar do interior chamado Oceano Katori que conectava o Rio Tone de hoje ao oceano. Naquela época, o Rio Tone fluía bem mais ao oeste, até a baía de Tóquio.

Para evitar enchentes frequentes do Rio Tone e aumentar a terra disponível para agricultura, Tokugawa Ieyasu decidiu divergir o rio. Após centenas de anos, o estuário foi redirecionado até Inubousaki. Areia foi usada para preencher parcialmente o oceano Katori para reduzir seu tamanho e ele se tornou a entrada de Kasumiga. (Eu fiquei interessada em Tokugawa Ieyasu após descobrir que ele foi capaz de fazer um projeto tão grande, mas infelizmente, está história é a única menção a ele nos textos de história e geografia.)

Nos mil anos que se seguiram, o Rio Tone e a entrada de Kasumiga se tornaram o que são hoje. Primeiro, a maioria das partes que corriam para a baía de Toquio se juntavam ao Rio Tone. É óbvio que uma área estérea como Tóquio não precisa de água. Então, a água alavanca na rosa de Tone, e para prevenir enchentes, um canal foi construído para o conectar com entrada de Kasumiga. Por isso, a entrada se expandiu para quase seu tamanho original. Ela ultrapassa o Lago Biwa em termos de área da superfície e é agora o maior lago do Japão.

E agora, já que as margens finais do rio correm por Kamisu 66, nós construímos múltiplos canais para usar a água como transporte. É por isso que estarmos indo rio acima, emergindo no rio propriamente dito pela primeira vez era bem excitante.

— Ei, vamos mais rápido. — Satoru disse.

— Por quê? Você não quer olhar as coisas aqui? — Eu perguntei.

— Eu passo. Não tem muitos animais por aqui, de qualquer forma.

— Mas estamos quase no lugar que devemos acampar hoje, certo? — Mamoru disse incerto.

— Do que está falando? Esqueceu do verdadeiro propósito dessa viagem? É para procurar o Minoshiro do mal e cães-balão, né? Vamos lá, vamos nos apressar para atravessar a entrada e desembarcar.

— Umm, o Príncipe do Sol disse que não é permitido ir tão longe da entrada. Descer aqui...

Dessa vez, até Maria parecia hesitante.

— Vai ficar tudo bem. Só vamos dar uma olhada por aí e voltar. — Satoru disse despreocupadamente, remando para frente.

— O que devemos fazer? — Eu perguntei para Shun, que parecia perdido em seus pensamentos.

Sua resposta não foi o que eu esperava.

— Seria ruim se nos descobríssemos. Mas eu meio que quero ir ver, já que não acho que teremos outra chance como essa no futuro.

Com essas palavras, estava decidido. Satoru apareceu com uma ideia furtiva de ir para o lugar que iríamos acampar e deixar marcas para fazer parecer que havíamos passado a noite lá.

— Assim, quando o próximo grupo vier, vão pensar que estivemos aqui, certo? — Ele disse, soando orgulhoso de si mesmo.

Eu nunca o vi tão feliz depois de fazer algo que realmente valesse a pena elogiá-lo.

Nós fomos para o lago novamente, indo mais rápido do que deveríamos. Uma pequena andorinha voou sobre nós, nos desafiando para uma corrida, mas Sakuramasu 2 a alcançou em poucos segundos. A ave rodou um pouco e voou para fora de nossa vista.

Eu me espreguicei e deixei a brisa fluir por mim. Eu tirei meu chapéu antes que o vendo o soprasse para longe e soltei meu leque de cabelo. Meu poncho se debateu e tremulou.

Mesmo que não pudesse ver nada além de água ao meu redor, eu não fiquei cansada da vista. O sol espiando por entre as nuvens fazia uma exibição brilhante na água limpa do lago, e a espuma de nosso barco fazia arco-íris em miniatura no ar.

Eu estava tão concentrada no cenário que levou algum tempo para perceber que minha visão estava ficando estranha. Cores começaram a oscilar na frente de meus olhos e eu vi pós-imagens nos cantos deles.

Me virando, eu vi Satoru encarando atentamente a superfície do lago. Quando tentava mover algo, como um barco, na água, você primeiro se concentrava na área na frente do barco, e tentava reduzir a distância. (Mas depois de ganhar velocidade, você precisa imaginar que está empurrando a água e deslizar sobre ela para se mover.)

As duas formas envolviam muita concentração e é cansativo fazer isso por um longo tempo. Além do fato de que o barco está constantemente se movendo e como você está encarando pontos fixos, fica fácil de se sentir enjoado.

Satoru percebeu meu olhar e pareceu aliviado. “Viemos bem longe, você quer trocar comigo?”

Eu balancei minha cabeça lentamente. “Eu não sei se consigo.”

— O que você quer dizer com não consegue? — Satoru disse, soando um pouco irritado.

— Meus olhos estão estranhos, eu acho que encarei os reflexos por muito tempo. — Expliquei.

Satoru me encarou desacreditado, e então disse relutantemente: “Não dá para evitar, então. Vou ter que impulsionar a canoa o caminho todo.”

Eu me desculpei, e então lembrei que tinha um par de óculos de sol em minha mochila e os coloquei. Eram de meu pai, que encomendou especialmente de um artesão. Foi feito com vidro de alta qualidade com uma mistura especial de tinta de garança e corante de caqui que bloqueava os raios do sol. Eu deveria ter os usado desde o início.

Tudo ficou um pouco mais escuro quando os coloquei, mas pelo menos meus olhos pararam de doer.

Éramos proibidos de usar nosso cantus se tivesse qualquer problema com nossos olhos. Alguém habilidoso como Shisei Kaburagi poderia usar o cantus na completa escuridão, mas iniciantes como nós precisávamos ver o que estávamos fazendo para poder criar imagens em nossas mentes.

Atravessamos a entrada de Kasumiga dentro de uma hora. Enquanto estávamos viajando pela parte mais funda do lago, houve um grande barulho dos matagais de junco e uma sombra enorme apareceu na água, sumindo no instante seguinte. Tinha um formato de diamante, então era provavelmente um caranguejo-tigre. Como não estávamos perto da costa naquele momento, eu percebi que caranguejos-tigre deviam ser nadadores melhores do que eu achava.

Atrás dos juncos, podíamos ver a floresta profunda e o rio verde correndo dela. Nós pesquisamos antes de ir, e aprendemos que o rio era chamado de rio Sakura. O Monte Tsukuba deveria estar bem na nossa frente, mas estava escondido pelas árvores altas.

Mais acima, o rio se dividia em dois. Não tínhamos certeza para qual lado ir, então escolhemos ir para a esquerda porque o ramo estava fluindo mais rápido. Cerca de um quilômetro depois, as árvores densas se abriram e vimos o Monte Tsukuba na nossa frente. O Rio Sakura dirigia-se para o norte do lado oeste da montanha.

Se continuássemos seguindo o rio, acabaríamos muito longe do Monte Tsukuba, então desembarcamos aqui.

— Isso! Conseguimos. — Shun disse, saindo primeiro.

Eu fui a próxima, seguida por Maria, Mamoru e por último, Satoru, parecendo exausto de impulsionar a canoa o tempo inteiro sozinho. Ele foi para os arbustos e o escutamos vomitar. Eu senti uma pancada de culpa no meu peito.

Nós escondemos as canoas entre os juncos. Tendo vindo tão longe, era improvável que alguém iria nos pegar, mas escondemos por prevenção. E para preveni-las de flutuar para longe, as ancoramos fundo na lama.

— E agora? Vai ser a hora do almoço logo. — Mamoru disse, olhando para nós esperançoso.

— Vamos subir a montanha primeiro e dar uma olhada. Levem só coisas leves que vão precisar, e podemos almoçar quando chegarmos lá.

Como Satoru ainda estava grogue, Shun se voluntariou para ser o líder. Nós normalmente reclamávamos quando Satoru fica no controle, mas todos estavam dispostos a seguir Shun. Então nós colocamos nossas mochilas e fomos para a montanha.

A escalada sem um caminho era mais difícil do que esperávamos. Quem estava na frente usava seu cantus para limpar as heras e as moitas, mas era muito cansativo então tinham que trocar a cada cinco minutos.

Além disso, havia um número chocante de mosquitos, moscas pretas, e outros insetos chupadores de sangue voando ao nosso redor. Os insetos não podiam entrar na Barreira Sagrada, então era por isso que havia tantos ali. Mesmo que continuássemos os matando, eles nunca paravam de vir. Tínhamos que usar nossos canti continuamente, o que queimava muita energia. (E como meus óculos de sol deixavam mais difícil para mim ver os mosquitos menores, eu estava ainda mais cansada.)

Foi por isso que quando uma estranha construção abandonada de repente apareceu na nossa frente, ficamos chocados.

— O que é aquilo? — Maria perguntou, soando assustada.

Era irracional. O prédio tinha mais ou menos o tamanho da câmara municipal de Kamisu, coberto tão grossamente com hera e líquen que parecia uma criatura adormecida que tinha crescido na floresta.

— ... é provavelmente o templo do Monte Tsukuba. — Satoru disse, vendo um mapa antigo que ele havia levado.

Apesar de não estar completamente de volta ao normal, Satoru tinha mais ou menos recuperado sua energia após voltar ao chão sólido.

— Um templo? — Eu perguntei, segurando um grito ao acidentalmente tropeçar em um sapo. Havia animais nojentos por toda a montanha.

— Tem uma história de pelo menos dois ou três mil anos. Essa construção também, provavelmente já era considerada bem velha há mil anos. — Shun complementou.

— Devemos comer aqui? — Mamoru perguntou.

Todos estavam famintos, mas a ideia de almoçar ali era desagradável.

Quando eu estava prestes a negar, um grito veio da minha esquerda como se coagulasse todo o meu sangue. Alguém deve ter pisado em um sapo também, pensei. Mas quando olhei, eu vi Satoru parado lá, enrijecido como uma tábua. E quando Shun se aproximou, ele congelou também.

— O que foi?

Eu percebi que os quatro tinham ficado duros como estátuas. Ninguém respondeu minha pergunta.

O que diabos estava acontecendo? Eu estava muito perto de ter um ataque de pânico. Então, ao seguir o olhar deles e ver o que tinham visto, foi a minha vez de gritar.

Na minha frente estava uma criatura bizarra que eu nunca havia visto antes.

Os nomes Minoshiro do mal e falso Minoshiro vieram até mim. A coisa definitivamente lembrava um Minoshiro a primeira vista, mas era completamente diferente se examinasse de perto.

Tinha cerca de cinquenta ou sessenta centímetros de comprimento, com pele enrugada que se esticava e se contraía constantemente, fazendo partes de seu corpo dobrarem e encolherem anormalmente. Em suas costas havia um grupo de espinhas meio transparentes como a de ouriços do mar, cada uma brilhando com todas as cores do arco-íris.

As cores se misturavam, criando um padrão estonteante no ar. Mesmo com meus óculos de sol, eu podia sentir as lindas luzes anestesiando meu cérebro.

O Falso Minoshiro foi lentamente até o templo, deixando um rastro de luzes em seu sulco.

Meu próprio grito tinha acordado algo em minha mente. Eu me virei para Shun e Satoru e comecei a gritar para eles, “Rápido... Satoru! Shun! Peguem-no, está fugindo!”

Mas nenhum dos dois se moveu; eles apenas encaravam o Falso Minoshiro.

Eu comecei a usar meu cantus, mas hesitei. Antes, havia dito que era perigoso muitas pessoas usarem seus canti na mesma coisa. Se alguém já estava concentrado no alvo, era melhor para todos não usarem seus canti, não importando a situação.

Os olhares de Satoru e Shun estavam fixos no Falso Minoshiro. Normalmente, era um sinal de que estavam usando seus canti, mas dessa vez, os dois estavam congelados no lugar.

Pareceu uma eternidade, mas na verdade apenas alguns segundos se passaram. O Falso Minoshiro andou devagar até a grama alta e desapareceu debaixo do prédio principal do templo.

Eu não conseguia entender por que os quatro ainda estavam congelados no lugar, e não sabia o que fazer. Eu não sabia nem mesmo o que havia acontecido para começo de conversa para deixá-los daquela jeito. Eu queria balançá-los para os acordar, mas fui invadida com um medo irracional de que se os tocasse, eles iriam cair mortos.

O primeiro a sair do transe foi, surpreendentemente, Mamoru.

— ... Estou com fome. — Ele disse em uma voz pequena, olhando ou redor.

— Hm, o que exatamente aconteceu agora?

Maria, Satoru e Shun voltaram a seus sentidos e caíram no chão. Satoru parecia muito enjoado e Shun esfregou seus olhos.

— Estamos mortos?

Ironicamente, a pergunta de Maria nos fez cair na realidade.

— Aquela história provavelmente era mentira. Não se preocupe. — Satoru disse, gemendo.

“Provavelmente” fazia parecer que ele estava tentando fingir que não havia sido ele que tinha inventado a história para começo de conversa.

— Tirando isso, por que não consegui me mover?

— Não consegui também. Mas por quê? Satoru? — Maria embrulhou os braços sobre si, inquieta.

— Não sei. Quando vi as luzes, minha mente ficou branca, e não podia me concentrar não importando o quanto tentasse.

— Ah! — Eu exclamei. — É igual daquela vez, certo? Quando estávamos no Templo da Pureza, olhando para as chamas do altar...

— Eu entendo. — Shun disse, levantando. — Faz sentido. Estávamos hipnotizados.

— O que isso significa?

— É uma técnica anciã para controlar pessoas. Através de sugestões, você pode fazê-las dormir, falar a verdade, ou fazer qualquer coisa que você comande.

Eu não conseguia imaginar onde Shun tinha aprendido algo assim.

— Mas Saki estava bem; ela gritou para nós pegá-lo e tudo mais. Talvez ela seja tão cabeça-dura que é imune.

— Não sou não. — Eu estourei. — É porque eu estava usando os óculos de sol...

O mais simplório de nós era definitivamente Mamoru, mas eu parei antes de falar alto.

— Hipnose usa luzes azuis e vermelhas piscando. Os óculos vermelhos provavelmente cortaram o efeito. Deixe-me ver rapidinho.

Enquanto eu me perguntava de onde ele tinha tirado essa informação, ele colocou meus óculos de sol e olhou para o céu.

— Mas se a Saki é a única que pode usar seu cantus, vai ser difícil de pegar aquela coisa. Parece que ele gosta de se esconder em fendas estreitas.

— Parece que sim. Ei, não deveríamos voltar logo? — Maria disse, atipicamente nervosa.

— Por que não voltamos para as canoas e almoçamos?

Eu não tinha certeza se Mamoru estava assustado, como sempre, ou apenas com fome.

De repente, eu tive uma ideia.

— Está tudo bem! Podemos pegá-lo.

Os quatro pareciam apreensivos, mas quando expliquei meu plano, suas dúvidas deram lugar para esperança e entusiasmo. Não pude negar que ver aquilo me deixou extasiada.

Naquela época, não tínhamos ideia das grandes implicações que capturar o Falso Minoshiro traria.

— Certo, está ótimo. Pegamos um grande. — Satoru disse em uma voz satisfeita, após ter se recuperado um pouco.

— Esses caras parecem que podem ser bem gostosos. — Mamoru também, soou bem mais energético agora que tinha comido seu almoço.

— Você provavelmente é a única pessoa no mundo que acha que eles parecem apetitosos. — Shun pareceu um pouco surpreso.

Eu me sentia da mesma forma.

Levitando dois metros acima do chão em nossa frente estavam três caranguejos-tigre. Ao contrário de nossas expectativas, eles estavam pendurados sem se debater, soprando bolhas docilmente. Todos os três eram manchados de uma cor marrom esverdeada, e o maior caranguejo ostentava um pedaço que parecia um mapa. O caranguejo mediano tinha listras finas em sua concha que pareciam raízes de plantas e o menor tinha pingos verde que pareciam líquens.

Satoru virou o caranguejo maior com seu cantus para ver o lado de baixo. O caranguejo-tigre repentinamente chicoteou quando o caranguejo de tamanho médio passou por seu campo de visão. Parece que o fez para nadar no ar e bateu suas pinças ameaçadoramente.

— Uau. Qual é o problema dele? — Satoru disse. Ele sorriu nervosamente, tentando esconder o fato de que tinha quase fugido de medo naquele momento.

Nós amarramos os caranguejos-tigre com algumas videiras de cinco folhas. Era difícil fazer isso certo para que pudessem se mover livremente, mas ainda estar em nosso controle. Maria tentou enrolar o final das videiras ao redor dos espinhos nas conchas deles para dominá-lo, mas os caranguejos eram mais espertos do que esperávamos. Eles continuavam se virando para criar buracos nas videiras e puxava-as com as garras. No fim, tivemos que passar as videiras em caules de bambu para parar os caranguejos de rasgá-las.

Apesar de ter dado muito mais trabalho do que eu esperava, fiquei satisfeita com o resultado. A visão dos três caranguejos-tigre no fim de suas coleiras me lembrou um método ancião de pescar corvos-marinhos. Nós fomos procurar o Falso Minoshiro, ainda observando os caranguejos para ter certeza de eles não chegarem muito perto uns dos outros.

Pensamos que os caranguejos ficariam infelizes em serem amarrados e conduzidos por aí em uma coleira, mas estávamos errados. Ou se estavam infelizes, não podíamos saber; tudo que faziam era comer. Tudo que estava vivo dentro de seu alcance era pego e devorado.

No início, estávamos preocupados de que uma vez que eles ficassem cheios, os caranguejo-tigre iriam parar de procurar por mais comida. Mas ao invés disso, eles continuaram desmembrando suas presas com suas garras afiadas. (A visão de cobras e sapos se debatendo de dor parecia desanimá-los, e seguiam em frente depois disso).

Se nada desse resultado depois de tudo isso, todos iriam provavelmente me odiar por ter uma ideia tão desagradável.

Mas quase uma hora depois, o caranguejo-tigre de Maria acertou em cheio.

— Parece que pegou algo de novo. — Maria olhou embaixo do templo e fez uma careta. — Parece algo grande dessa vez.

Todos nos encolhemos quando ouvimos isso. A visão de um caranguejo-tigre se deliciando com um mamífero maior era algo que ninguém queria ver.

— Puxe para fora e veja. — Satoru disse, dando de costas.

— Me ajude.

— Você pode fazer sozinha, certo? Só use seu cantus e puxe as cordas.

— Mas é assustador. — Maria olhou para nós implorando.

Eu preciso confessar que ignorei o pedido de minha melhor amiga e fingi estar ocupada com meu próprio caranguejo-tigre. Estava me sentindo um pouco indisposta por ver o caranguejo de Satoru estripar sua presa um tempo atrás.

— Eu faço, então.

Inesperadamente, Mamoru se voluntariou.

Os dois começaram a puxar o caranguejo-tigre enquanto o resto de nós se segurava, esperando algo desagradável aparecer.

— Olhe, eles pegaram. — Shun disse.

Ouvindo isso, voltamos a prestar atenção no caranguejo.

— O Falso Minoshiro! — Maria gritou.

Eu coloquei meus óculos de sol bem na hora.

O caranguejo-tigre emergiu, segurando sua presa fortemente com as duas garras.

Não havia dúvida de que era o que tinha escapado antes. Mesmo com o caranguejo-tigre estar o agarrando tão ferozmente que parecia que ele seria cortado ao meio, ainda estava se debatendo com toda a sua força para escapar. Quando ele nos viu, todos os espinhos em suas costas se levantaram e as pontas começaram a brilhar.

— Shun! Satoru! O peguem rápido! — Eu gritei, então percebi que estava na mesma situação que ocorreu antes.

Tirando eu, todos estavam olhando petrificados. Todos tinham caído na hipnose do Falso Minoshiro.

Eu teria que fazer sozinha, então. Pelo menos dessa vez eu tinha um aliado poderoso. Um com um cérebro primitivo que era imune ao hipnotismo, e um mente teimosa que nunca deixaria sua presa escapar: o feroz caranguejo-tigre.

Apesar de usar os óculos de sol, eu também sabia que não era para olhar para os padrões de luzes, então permaneci lúcida. Em olhos meio abertos, eu comecei a sistematicamente girar e tirar os espinhos brilhantes.

— Por favor, pare sua atividade destrutiva.

Uma voz feminina surgiu do nada, me assustando.

— Quem está aí? Quem é você?

— Você está destruindo propriedade da biblioteca pública. Por favor, pare sua atividade destrutiva imediatamente.

A voz estava vindo do Falso Minoshiro.

— Isso é porque você continua tentando nos hipnotizar.

— O uso da hipnose de luzes defensivas por máquinas terminais é sancionado pela ordem 488722, item 5. Por favor, pare sua atividade destrutiva imediatamente.

— Pare de nos hipnotizar, daí eu vou parar de retirar essas suas coisas brilhantes.

— Eu repito meu aviso. Por favor, pare sua atividade destrutiva de uma vez. — O Falso Minoshiro repetiu obstinado.

— Estou te avisando também. Se você não parar, eu não vou parar. Vou tirar todas essas suas coisas brilhantes!

Surpreendentemente, o Falso Minoshiro parou de brilhar. Parece que aquela ameaça simples foi efetiva o suficiente.

— Vocês estão bem?

Os quatro ainda pareciam que estavam letárgicos.

— Desfaça a hipnose, agora! Ou eu vou começar a arrancá-los novamente. — Eu disse advertindo.

O Falso Minoshiro respondeu rapidamente. “Efeitos da hipnose de luzes se desfazem com o tempo. O relatório do Instituto Nacional de Psiquiatria, número 49463165, afirma que não há efeitos colaterais visíveis.

— Desfaça. Agora. Ou...

Eu não precisei terminar minha sentença. O Falso Minoshiro de repente soltou um barulho penetrante e eu me abaixei instintivamente, cobrindo meus ouvidos. Os quatro começaram a se mover como se acordassem de um sonho.

Eu me virei lentamente para o Falso Minoshiro, explodindo com perguntas que eu queria fazer.

— Quem é você? O que é você?

— Eu sou o Ramal de Tsukuba da Biblioteca da Assembleia Nacional.

— Uma biblioteca?

— Se está querendo meu modelo e minha versão, eu sou um Arquivo Automotivo Panasonic, Evolução Autônoma versão SE-778H Lambda.

Eu não tinha certeza o que aquilo significava, mas não importava que tipo de monstro era, era uma introdução absurda. Parecia alguém te parando na rua e dizendo “Oi, meu nome é Biblioteca Nacional”, ou “Sou uma escola”.

— Está dizendo que é uma biblioteca de verdade? — Eu perguntei cuidadosamente.

— Sim.

Eu olhei o Falso Minoshiro. Agora que tinha parado de se contorcer e brilhar, ele definitivamente parecia feito por um humano.

— Onde estão os livros então?

— Todas as interfaces em papel impresso foram ou decompostas, ou perdidas através das guerras ou outra atividade destrutiva. Nenhuma existência sobrando foi confirmada.

— Eu não entendi muito bem, mas qual é o ponto se não tem nenhum livro? Então você é uma biblioteca vazia?

— Toda informação está arquivada em 890PB da memória holográfica.

Eu não tinha ideia do que ele estava falando.

— ... Se está tentando nos confundir com palavras grandes, talvez eu devesse todas essas antenas...

Fazer ameaças não era algo que eu estava orgulhosa em fazer, particularmente.

— Os conteúdos dos livros estão guardados dentro de mim, e podem ser acessados a qualquer momento. — Ele respondeu imediatamente.

Aquilo era melhor, apesar de eu ainda não entender completamente como funcionava.

— Que tipo de livros? — Satoru perguntou conversacionalmente.

— Todos os 38,242,506 volumes publicados no Japão desde 2129 AC até 671,630 volumes referenciados em inglês, assim como em outras línguas.

Nós cinco trocamos olhares. A maior biblioteca de Kamisu 66, em Kayawa, tinha menos de três mil livros disponíveis para o público, e se contasse com os livros guardados no subterrâneo, o total era talvez dez mil. Um corpo pequeno como o do Falso Minoshiro poder guardar mais de quatro mil vezes esse número era uma mentira que nem mesmo Satoru ousaria contar.

— Acessados a qualquer momento quer dizer que você pode lê-los sempre que quiser?

— Correto.

— Então se eu perguntasse qualquer pergunta, você encontraria o livro relevante entre todos os que estão guardados dentro de você? — Eu perguntei, duvidosa,

— Sim. O tempo de espera é de aproximadamente sessenta nanosegundos. — Disse o Falso Minoshiro, ou melhor, o Ramal Tsukuba da Biblioteca da Assembleia Nacional.

Eu não sabia quanto era sessenta nanosegundos, mas assumi que era algo como sessenta segundos.

— E-Então... Eu quero perguntar...!

Eu repentinamente fiquei muito entusiasmada. Eu poderia ter respostas para tudo que eu sempre quis saber até então. Centenas de perguntas vieram em minha mente de uma vez. Quando eu estava prestes a falar, Satoru me interrompeu com a questão mais inútil do mundo.

— Por que tem tantos sapos por aqui?

— Por que você parece assim se é uma biblioteca? — Maria perguntou.

Shun parecia que queria perguntar algo também, mas estava muito além de si da hipnose para formar uma sentença coerente.

— Eu... Eu quero perguntar. — Eu finalmente decidi o que eu queria saber. — Espíritos Malignos realmente existem? Além disso, e os Demônios do Carma?

Nós esperamos com as respirações pausadas. Sessenta segundos se passaram, então dois minutos, então três, mas o Falso Minoshiro permaneceu em silêncio.

— Ei, por que não está respondendo? — Satoru não podia aguentar mais.

— Registro do usuário é necessário para acessar os serviços de consulta. — Ele disse, sem mostrar um único traço de culpa por nos fazer esperar para nada.

— Droga, por que não nos contou isso antes? — Satoru disse reprovando.

— Como nos registramos?

O Falso Minoshiro ignorou Satoru e respondeu a pergunta de Maria.

— Você deve ter dezoito anos ou mais, e providenciar prova de seu nome, endereço, e idade com um dos seguintes: carteira de motorista, cartão de seguro (com endereço), passaporte (uma cópia com a data de nascimento completa, e endereço atual), identificação estudantil (com endereço e data de nascimento), certificado de residência (emitido nos últimos três meses), ou outra identificação oficial. Todos devem estar dentro da data de validade.

— Dezoito? Mas nós...

— Além disso, os seguintes formulários de identificação não são válidos: identificação de funcionário, identificação estudantil (sem dará de nascimento ou endereço), passes comunitários, cartões de trabalho...

O Falso Minoshiro estava provavelmente falando sobre alguns papéis que eram usados antigamente. Tínhamos uma noção do que ele estava falando porque tínhamos aprendido um pouco sobre a estranha era na qual pedaços de papel era mais importantes que as pessoas.

— E se não tivermos nenhuma dessas coisas? — Eu perguntei.

— Se o registro de usuário não for completado, os serviços de consulta serão indisponíveis. — O Falso Minoshiro disse na mesma voz plácida.

— Então não tem como evitar. Vou precisar te cortar, parte por parte, para acessar os livros dentro de você.

— Atividade destrutiva é uma ofensa criminal, punida pela lei.

— O que devemos fazer? Começar arrancando as penas, e aí cortando-o no meio? — Eu disse para Satoru, imitando uma ação de rasgar.

— Hmm, olhe como a pele é enrugada. Devemos provavelmente retirá-la primeiro. — Satoru disse com um olhar malicioso, entendendo o meu plano.

—... Requerimentos de documentação foram dispensados. Começando o registro do usuário! — Ele disse alto, ainda na mesma voz feminina calma. — Cada usuário pode falar seu nome claramente.

Cada um de nós paramos na frente do Falso Minoshiro em turnos e dissemos nossos nomes.

— Autenticação do padrão de íris, impressão de voz, e MRI da cabeça completa. Registro do usuário completo. Shun Aonuma, Maria Akizuki, Mamoru Itou, Saki Watanabe, serviços de consulta estão disponíveis por três anos começando hoje.

— Certo, então, por que tem tantos sapos...

Shun cobriu a boca de Satoru com sua mão direita. “Há montanhas de perguntas que queremos fazer, mas eu quero ouvir a resposta para a da Saki primeiro... Espíritos Malignos realmente existem? E quanto a Demônios do Carma?”

O Falso Minoshiro não pausou por um segundo dessa vez. “A palavra “Espírito Maligno” teve 671,441 resultados na base de dados, e pode ser separada em dois grupos. ① Criaturas que foram vistas no passado ancião, frequentemente chamadas de demônios, fantasmas, ghouls e outros nomes similares, que não existem na realidade. ② Um termo inventado nos últimos anos da civilização anciã para descrever aqueles que sofrem da síndrome de Raman-Klogius, também conhecida como síndrome da “Raposa no Galinheiro”. Não é confirmado sua existência no presente, mas existia no passado, e é altamente provável de retornar no futuro.”

Nós nos olhamos. Não conseguíamos entender o que ele estava falando, mas podíamos dizer que era algo que nunca seria ensinado para nós, e algo que definitivamente não era permitido nós sabermos.

— Demônios do Carma também foram descobertos antes da queda do império ancião, e era um termo comum para diversos casos da síndrome de Hashimoto-Appelbaum. Junto com os Espíritos Malignos, sua existência no presente não é confirmada, mas há um alto risco de reaparição.

— Isso... — Shun hesitou.

Eu vi seu rosto pálido e entendi dolorosamente bem o que ele estava pensando.

Não devíamos perguntar mais nada além disso. O aviso veio inconscientemente.

Mas abrir a caixa de Pandora quando sabíamos que não deveríamos era parte da natureza humana desde o início dos tempos.

Capítulo 07

— ...No ano 2011 do calendário Gregoriano, cientistas documentaram de forma conclusiva a existência da telecinese, a qual até aquele ponto era considerada um fenômeno oculto. — O Falso Minoshiro explicou desapaixonadamente.

Sua voz passava a impressão de uma mulher culta e inteligente, e apesar de ser uma voz encantadora, soava perfeita demais, e por isso, inumana.

— Antes disso, sendo em público ou em laboratórios, todos os experimentos de TC falharam completamente. Entretanto, na República do Azerbaijão em 2011, o cientista cognitiva Imran Ismailov conduziu experimentos completados com sucesso na capital de Baku. Na mecânica quântica, há um fenômeno conhecido como paradoxo de uma partícula observável afetando outra partícula, mas Ismailov foi o primeiro a prever que aumentar o mundo microscópico para um evento macroscópico também servia para a TC. Aqueles duvidosos do sucesso dos experimentos de Ismailov foram recrutados para agir como testemunhas com a habilidade latente de resistir à TC. (Após passarem por diversos testes, foram subdivididos em vários grupos para que nenhuma testemunha soubesse o âmbito total do experimento. Essas testemunhas então foram pedidas para esconder certos fatores de alguém que sabia dos experimentos de Ismailov. Havia múltiplos fatores de controle...)

Nós cinco ouvimos encantados o discurso longo do Falso Minoshiro. Mesmo que não entendêssemos uma fração do que estava sendo dito, nós bebemos de suas palavras como plantas depois de uma seca.

Até agora, nosso conhecimento do mundo era como um quebra-cabeça que faltava a peça mais importante. As palavras do Falso Minoshiro estava nos dando a peça final, saciando nossa curiosidade.

Mas nós nunca imaginamos que iríamos ouvir sobre uma história tão infernal que deixaria nosso cabelo em pé.

— ... A primeira pessoa que Ismailov descobriu com percepção extrasensorial, Nona Mardanova, era uma garota de dezenove anos. Tudo que ela conseguia fazer era mover uma leve bola de plástico selada em um tubo transparente, mas como uma semente de cristal que comanda uma solução química nuclear, ela foi a catalisadora que acordou o poder latente da humanidade.

Sem perceber, Maria veio para perto de mim e estava segurando minha mão firmemente. Como humanos vieram a manejar o poder como o de deus? A história de sua origem sempre foi vaga nos textos de história.

— ... O número de usuários de TC cresceu rapidamente e eventualmente chegou a 0,3 por cento da população total. Nos anos sequentes da desordem social, mais dados estatísticos foram perdidos. Entretanto, um crescimento na porcentagem de pessoas diagnosticadas com personalidade esquizoide foi documentado.

— Apenas 0.3 por cento? — Satoru murmurou duvidoso.

Eu também não acreditava. O que havia acontecido com 99.7 por cento restante da população?

— O que quer dizer com desordem social? — Maria perguntou.

— No começo, pessoas condenavam os usuários de TC. Mesmo que tivessem apenas habilidades fracas, era mais do que o suficiente para potencialmente destruir a ordem naquela época, e os usuários de TC deixavam esse fato escondido. Para o Japão, essa destruição começou com o incidente do Garoto A.

— Garoto A? É esse o nome dele? — As sobrancelhas de Mamoru se franziram.

— Naquela época, era comum esconder o nome de menores envolvidos em atividades criminais, então um codinome era dado.

— O que ele fez? — Eu perguntei.

No pior caso, eu esperava que a resposta fosse que ele cometeu um roubo ou algo assim.

— Os poderes de A eram rudimentares, mas um dia ele percebeu que poderia abrir qualquer fechadura que encontrasse. Usando essa habilidade, ele repetidamente invadiu casas no meio da noite, estuprou dezenove mulheres adormecidas e matou dezessete delas.

Estávamos paralisados com o choque. Eu não conseguia acreditar o que havia ouvido. Estupro. E assassinato. ...Matar pessoas.

— Espera um pouco! Isso é impossível! A não era humano? Um humano matou outro humano? — Satoru perguntou roucamente.

— Sim. Seguindo a prisão de A, o número de crimes envolvendo TC aumentou, mas a maioria ficava sem solução porque a maior parte dos métodos normais de vigilância eram inúteis contra o TC. Pessoas normais começaram a atacar os usuários de TC como um todo, começando com assédio privado e aumentando para assédio público que quase terminavam em execuções. Em defesa, os usuários de TC formavam suas próprias facções e os mais zelosos deles propuseram estabelecer uma sociedade exclusiva para usuários de TC. Terrorismo indiscriminado pelos usuários de TC se seguiram. Os conflitos políticos, éticos e filosóficos resultados disso afundou o mundo em uma era de discórdia violenta. Sem experiência prévia nessa situação, parecia que não haveria fim para essa guerra mundial.

Eu permaneci em silêncio para olhar os outros. Medo havia limpado todas as outras emoções de seus rostos. Mamoru estava assustado no chão com as duas mãos contra seus ouvidos.

— ... país com o maior poder militar, América, começou uma guerra civil para erradicar os usuários de TC. Usando eletrochoque para distinguir entre eles e pessoas normais, e a disponibilidade enorme de armas, a população de usuários de TC na América do Norte caiu de 0.3 para 0.0004% em um curto período de tempo.

Satoru continuou balançando sua cabeça, sussurrando, “Isso não pode ser verdade.”

— .... por outro lado, o superpoder científico, Índia, que diferenciou com sucesso o DNA de pessoas normais e usuários de TC, estava pesquisando métodos de controlar os genes humanos. Infelizmente, essa pesquisa não obteve sucesso, mas os dados coletados se tornaram úteis depois.

Como se fosse um sonho, eu olhei para o animal-máquina pego entre as pinças do caranguejo-tigre. Poderia, na verdade, ser um demônio enviado do inferno? Iria nos corromper com suas palavras estranhas, e eventualmente nos deixar loucos.

— ... ironicamente, porque suas vidas estavam sendo ameaçadas continuamente, as habilidades dos usuários de TC sobreviventes evoluíram rapidamente. No início, achava-se que a TC era a projeção da energia gerada pela quebra do açúcar no cérebro. Por causa disso, deveria ser naturalmente limitada pela quantidade de açúcar no corpo. Mas isso estava incorreto. Na realidade, não havia nenhum limite para o quanto de energia podia ser usada. Naquela época, o usuário mais poderoso de TC tinha poder o suficiente para parar um ataque nuclear. Então equilíbrio de poder mudou para os usuários de TC e os governos do mundo todo desabaram. Os livros de história que temos agora não mencionam a civilização passada porque ela foi, em essência, completamente resetada. A roda do tempo foi revertida, e nós retornamos para a Idade das Trevas. Por causa da guerra, da fome, pandemias, e outros desastres, a população humana caiu para menos de dois por cento do que era na Era Dourada.

Eu senti meu coração estremecer. Era realmente um sentimento desagradável. Eu queria que o falso Minoshiro parasse de falar, mas eu não conseguia fazer meus lábios formarem as palavras. Parecia que todo mundo estava no mesmo estado.

— ... é impossível dizer com certeza o que aconteceu durante a Idade das Trevas que foram os próximos quinhentos anos. A Infraestrutura desabou, e naturalmente, a comunicação pela Internet foi comprometida. Mais uma vez, a propagação da informação era limitada pela geografia, e as pessoas reverteram a viver em um mundo estreito e fechado. — O falso Minoshiro disse alegremente, como se fossem notícias ótimas. — Entretanto, alguns livros novos foram publicados nesse período. A literatura de maior confiança daquela época, diz que as sociedades do nordeste da Ásia foram divididas em quatro grupos conflitantes. Ironicamente, por conta da diminuição da população, essas segregações eram possíveis. O primeiro grupo eram impérios escravos controlados por usuários de TC. O segundo eram tribos de pessoas não-usuárias de TC que queriam escapar dos impérios escravos. O terceiro eram bandidos nômades que usavam TC para saquear e assassinar. E o último eram cientistas que queriam preservar o conhecimento ancião e sua tecnologia.

— Livros, como os que você mencionou antes, os pequenos dentro de você? — Shun perguntou, quebrando o silêncio.

A tensão aliviou um pouco quando o assunto mudou.

— Não. Livros normais feitos com uma forma antiga de impressão. Nossa biblioteca scaneia esses livros e grava os dados.

Eu parei de entender o que ele estava falando logo quando chegou o ponto principal.

— Então você está com um dos quatro grupos?

— Havia um contato regular, mas além disso, não trabalhamos juntos. Bibliotecas existem para proteger o conhecimento humano, mas foram, infelizmente, os alvos de vários ataques durante aquela era. Por causa disso, os robôs de arquivo automotivos foram inventados. Em áreas urbanas havia modelos que podiam viajar livremente pelos sistemas de drenagem, mas suas funções foram destruídas por ataques nucleares. Os únicos tipos que permaneceram foram os que foram feitos para imitar criaturas vivas, impermeáveis para os elementos e que podiam adquirir e gerar sua própria energia. Esses foram mais modificados, até que puderam mudar sua forma de acordo com o ambiente. A versão de Evolução Autônoma, como eu. — O falso Minoshiro disse com orgulho.

— Criando sua própria energia... então o que você come? — Mamoru levantou sua cabeça.

— Animais de tamanho apropriado. Organismos como micróbios podem ser consumidos e digeridos como são. Ou, quando a oportunidade surge, posso capturar mamíferos pequenos e chupar seu sangue.

Apenas imaginar isso era nojento. Eu virei as costas para o falso Minoshiro.

— ... E depois? O que aconteceu entre a Idade das Trevas e agora? — Shun retornou ao tópico original.

— Durante a Idade das Trevas, não havia grupos além desses quatro, certo? Então qual deles...?

Eu finalmente entendi. Nós éramos diretamente descendentes de um desses quatro grupos.

— O primeiro a morrer foram os bandidos.

Ouvindo isso, fiquei levemente aliviada.

— Cada família de bandidos era formada de vinte ou trinta membros. Por não hesitarem em utilizar do TC, e às vezes massacrarem vilas inteiras, eram extremamente temidos. Entretanto, esse estilo de vida era extremamente instável. (Para os bandidos, os impérios escravos e nômades eram presas, mas para esses dois grupos, os bandidos não eram nada mais que um incômodo, então usaram todo método possível para exterminá-los.)

— Todo método possível? — Satoru perguntou, apesar de eu desejar que ele não tivesse.

— O método de transporte preferido dos bandidos eram veículos automáticos de duas rodas. Apesar de naquele tempo não haver mais meios de produzir motores e pneus, eles usavam TC para reviver técnicas de produção de ferro. Usaram centenas de quilos de ferro para fazer rodas e usaram TC para impulsioná-las a velocidades de trezentos quilômetros por hora. Eles rasgavam pelas planícies, faíscas voavam das rodas, saqueando vilas em seu caminho. Sempre que os aldeões viam nuvens de fumaça e ouviam o rugido dos motores, eles sabiam que os deuses da morte estavam chegando. Em defesa, os aldeões cavavam fossos alinhados com lanças de bambu e amarravam cordas finas na altura do pescoço. Eles também usavam outras armadilhas simples, mas efetivas, como colocar minas terrestres, colocar venenos que agem lentamente em comidas deixadas como isca, infetar jovens mulheres com doenças mortais e deixar os bandidos as estuprarem, etc.

Mais uma vez, eu estava tão enojada que tive que lutar contra a vontade de vomitar.

— É claro, os bandidos retaliaram atacando sem misericórdia com TC, mas sua queda veio de lutas internas. Como eram todos ligados por sangue, os bandidos eram contra inimigos de fora do grupo, mas por causa dos ranques, sempre havia o medo de ser morto por um bandido amigo. Para sobreviver, eles tiveram que se cuidar com qualquer sinal de hostilidade de outro membro. Essa mentalidade de matar-antes-de-ser-morto escalou ao ponto de que a dissociação do grupo era inevitável.

Nós limpados o suor de nossas faces e tentamos desfazer os nós em nossos estômagos. Mas parecia que Mamoru finalmente havia chegado em seu limite; ele se virou e começou a vomitar nos matagais.

— Pare! Cale a boca! — Satoru gritou. — Não ouça o que ele tem a dizer!

— Não... espere. Eu ainda tenho mais algumas perguntas. — Shun disse, mesmo estando pálido como um fantasma. — É o suficiente sobre os bandidos. O que aconteceu com os outros três grupos?

— Os aproximadamente dezenove impérios escravos no Nordeste da Ásia sobreviveram por seiscentos anos em uma política de não-agressão mútua e não-intervenção. Dos quatro impérios que existiam no arquipélago japonês, eu apenas tenho dados do Império da Sagrada Flor de Cerejeira, que consistia nas regiões de Kanto e Chubu. A longevidade do Império da Sagrada Flor de Cerejeira perdia apenas para o Império de Nova Yamato, que continha tudo ao oeste de Kansai. Entretanto, O Império da Sagrada Flor de Cerejeira passou por noventa e quatro gerações de imperadores em quinhentos e setenta anos.

— Não precisa nos contar a história de cada um dos noventa e quatro. — Maria disse, carrancuda.

— Por que os imperadores se sucederam tão rapidamente? — Shun parecia mais abalado que nós, mas continuou a pressionar resolutamente.

— Um Estudo do Império da Sagrada Flor de Cerejeira cita o historiador J.E. Acton, “Poder tende a corromper, e poder absoluto corrompe absolutamente”. Os usuários de TC que comandavam os impérios escravos tinham um poder que nunca existiu na história da humanidade. Eles eram literalmente como deuses, mas tais poderes vinham com consequências igualmente devastadoras.

A história do falso Minoshiro era tão cativante que nós nos prendemos em cada uma de suas palavras apesar de nosso julgamento nos avisar.

O Império da Sagrada Flor de Cerejeira começou como uma oligarquia comandada por um grupo seleto de usuários de TC. Ondas após ondas de expurgos políticos ocorreram até apenas uma pessoa sobrar, que então comandou uma monarquia absoluta.

— O paradeiro do imperador sempre foi escondido, e ele viajava com numerosos dublês, mas em um império com uma larga população de usuários de TC, era impossível detectar e contrariar cada tentativa de assassinato. Então, após os bandidos morrerem, (uma família de usuários de TC comandou mais de dez mil cidadãos.) Mas mesmo isso não pode trazer a verdadeira paz e estabilidade.

— ... Vamos voltar logo. Estou cansado, e estou com sede já faz um tempo. — Mamoru reclamou choroso com suas mãos ainda em seus ouvidos.

Ninguém se moveu.

— Um Estudo do Império da Sagrada Flor de Cerejeira reporta que todos os seis imperadores que reinaram por mais tempo tinham o mesmo alinhamento psicológico. Vários pesquisadores da Sociedade de Pesquisa de Campo Histórica/Grupo de Observação de Sakura perderam suas vidas investigando esse tópico.

Fora Mamoru, o resto de nós tinha sucumbido para uma nova forma de hipnose. A voz do falso Minoshiro tinha penetrado em nossos ouvidos e estava ecoando dentro de nossas mentes.

— Foi dado a cada imperador um nome póstumo dependendo dos atos que conseguiu realizar em seu reinado. Em alguns casos, também havia apelidos zombeteiros dados pelo público. Dados afirmam que durante a coroação do quinto imperador, o Imperador do Prazer, os aplausos do público continuaram por três dias e três noites. Pode soar como um exagero, mas a verdade do assunto foi revelada depois. As primeiras cem pessoas que pararam de aplaudir foram transformadas em sacrifícios. Eles foram colocados no fogo, e seus corpos queimados se tornaram estátuas para decorar o palácio. Dali em diante, o Imperador do Prazer, foi chamado de Imperador dos Gritos Eternos. — O falso Minoshiro continuou placidamente.

— A décima terceira imperatriz, Imperatriz Airin, foi chamada de Rainha da Tristeza. Toda manhã, ela sentia alegria em ver as execuções públicas das pessoas que haviam a desagradado de alguma forma. Se tornou rotina para os trabalhadores do palácio comerem corretamente para não vomitarem devido ao horror durante as execuções.

— ... trigésimo terceiro imperador, o Imperador da Magnanimidade, foi chamado de Rei Lobo sua vida inteira, mas gradualmente adquiriu uma conotação negativa. Isso foi porque ele frequentemente ia caminhar pela cidade, e deixava uma montanha de corpos em seu caminho, como a consequência de se enfrentar uma besta violenta. A imagem do TC do Imperador da Magnanimidade era da mandíbula de uma besta gigante desmembrando os membros das pessoas, apesar de dizerem que partes dos cadáveres continham marcas dos dentes do próprio Imperador.

— ... O filho do Imperador da Magnanimidade, o trigésimo-quarto imperador, o Imperador da Virtude Pura, foi chamado de Rei Herege após sua morte. Quando ele tinha doze anos, ele estrangulou seu pai adormecido e usou-o para alimentar os cachorros. Ele foi elogiado pelo público, mas logo se tornou paranoico de ser assassinado, então um por um, ele matou seus irmãos mais novos e primos homens e deixou as baratas devorarem seus corpos. Mas mesmo que não houvesse muitos mais usuários de TC que podiam usurpá-lo, seu reinado era exposto para outras ameaças. Atentados de assassinato por cidadãos normais começaram. No fim, o Imperador da Virtude Pura desenvolveu uma obsessão anormal a alimentar animais selvagens com humanos vivos.

— ... sexagésima-quarta imperatriz, a Imperatriz da Beneficência Sagrada, foi chamada de Rainha Coruja mesmo antes de chegar ao poder. Ela acreditava em todas as formas de cultos estranhos, e sua manifestação de TC era uma monstruosa coruja que vinha durante a lua cheia e abduzia garotas grávidas, cortava seus fetos, os espetava, e os oferecia em um altar para os depravados deuses desses cultos.

Eu me encolhi. A imagem que eu imagino quando uso meu cantus era bem similar a isso; Eu podia claramente imaginar uma criatura gigante voando pelo céu noturno.

— ... se tornou rotineiro para o próximo imperador matar o atual para assumir seu lugar. Uma vez que o sucessor chegava à puberdade e seu TC acordava, a vida dos imperadores era uma vela ao vento. Assim, a princesa era deixada em vigia por qualquer sinal de rebelião, e era extremamente comum que fossem mortas para prevenir, ou jogadas em uma masmorra com seus olhos arrancados. O septuagésimo-nono imperador, o Imperador da Luz Misericordiosa, percebeu que podia usar seu TC na noite que completou nove anos de idade. Na madrugada, ele escapuliu para o palácio e se escondeu no nicho atrás de um dos grandes vasos que se alinhavam no corredor, onde ele tinha a visão perfeita do trono. No momento que seu pai, o Imperador da Sinceridade, se sentasse, ele pararia seu coração. Então, usando seu TC para fazer parecer que seu pai ainda estava vivo, ele quebrou o pescoço de todos os conselheiros e ajudantes do imperador e escondeu seus corpos nos vasos pelo corredor. Mais de vinte pessoas forma mortas, mas para o Imperador da Luz Misericordiosa, conhecido como o assassino mais hediondo na história do Império da Sagrada Flor de Cerejeira, esse foi apenas um aquecimento. Para ele, matar era tão natural como respirar. Alguns até suspeitavam que durante metade do tempo ele nem mesmo percebia que estava usando seu TC quando massacrava seus retentores e cidadãos. Durante seu reinado, a população caiu pela metade, cadáveres se empilhavam nos campos, desenhando nuvens de moscas que bloqueavam o céu, e o cheiro do apodrecimento podia ser sentido a quilômetros de distância. Hoje em dia, o nome Imperador da Luz Misericordiosa foi esquecido, e apenas o Rei da Carnificina perpetua. Mas a extensão de sua personalidade inumada pode ser vista...

— Pare! Eu mandei parar! — Satoru gritou. — Qual o ponto de ouvir isso? Tudo pode ser inventado, pelo que sabemos. Shun, esqueça isso. Vai nos deixar loucos.

— ... Eu não gosto de ouvir sobre isso também. — Shun lambeu seus lábios secos e olhou para o falso Minoshiro. — Como nossas sociedade surgiu? É tudo que quero saber. Não diga nada desnecessário. Apenas explique como nossa sociedade surgiu.

— Os cinco séculos da Idade das Trevas acabaram com a queda dos impérios escravos. Havia muito tempo que haviam cortado relações com o resto da terra, e através de eliminações intergeracionais, a linhagem de TC nas ilhas japonesas tinha acabado. Os impérios se dividiram e lutaram entre si. Os caçadores nômades vivendo na selva começaram a planejar ataques contra as vilas desgovernadas, mas as vilas se juntaram e as guerras aumentaram em intensidade. Nas décadas de luta que se sucederam, o número das pessoas mortas foi maior que a soma das vítimas de TC dos últimos quinhentos anos. Os cientistas, que até então eram apenas observadores, entraram nesse momento para colocar ordem.

Então era isso. Um sentimento quente de alívio se espalhou pelo meu peito. O sangue dos imperadores não fluía em nossas veias, muito menos dos bandidos. Éramos descendentes do grupo que sempre quiseram proteger a lógica e a racionalidade.

— ... Mas como a sociedade se tornou a nossa? Os plebeus dos impérios escravos e os caçadores não tinham cantus... TC, certo? Para onde foram? — Shun perguntou em sucessão rápida.

O falso Minoshiro parecia ter antecipado isso. “Há poucas fontes confiáveis sobre os últimos séculos. Infelizmente, eu não posso responder sua pergunta.”

— Por quê? Os cientistas devem ter guardado registros, certo? — Maria disse.

— Eles guardaram durante a Idade das Trevas. Mas ao tentar impor controle e criar uma sociedade, diferentes políticas foram adotadas. Como todo conhecimento é essencialmente uma faca de dois gumes, eles quiserem controlar o fluxo da informação o mais estritamente possível. Infelizmente, isso significa que muitos livros foram queimados. O Ramal de Tsukuba da Biblioteca da Assembleia Nacional, em outras palavras, eu, analisei a situação e determinei que isso era uma situação perigosa. Por enquanto, eu decidi me esconder no Monte Tsukuba junto com vários backups.

A definição de “por enquanto” do falso Minoshiro parecia englobar alguns séculos.

— Após isso, o escudo exterior da biblioteca mudou, crescendo penas para imitar um Minoshiro. Mesmo que um humano usuário de cantus aparecesse, eu poderia usar hipnose leve, uma de minhas habilidades, para escapar...

— Não estou perguntando sobre isso! — Shun surtou. — Como nossa sociedade mudou da deles para a atual? Não, talvez não tenha mudado. Os cientistas foram os que criaram a nossa sociedade de hoje, certo? Se eles são nossos ancestrais, eles deviam ter cantus. Mas ao contrário dos imperadores e bandidos, eles nunca lutaram. Por quê?

— Isso não é... — óbvio, eu queria dizer, mas engoli minhas palavras.

Eu percebi que não era óbvio. Se nosso mundo realmente era como uma das histórias de Scheherazade, então a história humana era incrivelmente sangrenta. Em outras palavras, se essa criatura viva chamada humano era intrinsicamente tão violento que até mesmo caranguejos-tigre perdiam em comparação, então por que nossa sociedade atual é tão pacífica?

— Eles perceberam o potencial infinito, além do poder destrutivo do TC, então o maior problema no fim da civilização anterior era como se proteger contra ofensas. Para este fim, psicólogos, sociólogos, biólogos, e outros pesquisadores conduziram vários estudos, mas não há informação sobre qual política eles adotaram no fim.

— Quais eram algumas ideias que tiveram? — Eu perguntei.

— Uma das primeiras propostas era sobre a importância da educação. Educação precoce sobre sensibilidade, educação sobre lógica e moral vindo de orientação parental, proselitismo zeloso sobre religião, cada aspecto da educação era claramente explicada. Mas os resultados mostraram que apesar da educação ser de uma importância mortal, não era onipotente. Não importava o quão perfeito o sistema de educação era, as tendências violentas da humanidade não podiam ser reprimidas completamente.

Apesar de estar meramente resumindo o conteúdo de vários textos, o falso Minoshiro falou tão fluentemente como se estivesse expondo suas próprias crenças.

— Outra sugestão foi uma abordagem psicológica. Técnicas de manejo de raiva que treinavam a mente, como zen, yoga, e meditação transcendental, junto com medidas mais extremas como drogas psicotrópicas também foram estudadas. As duas foram efetivas, mas se tornou imediatamente claro que nenhuma era perfeita. Entretanto, testes psicológicos e comportamentais poderiam filtrar crianças-problema em potencial com precisão quase perfeita. Então o próximo passo era implementar a “Teoria da Maçã Podre”. Após isso, se tornou convencional eliminar uma criança que mostrava quaisquer sinais de perigo.

Um arrepio percorreu pela minha espinha. Eu não queria pensar sobre isso, mas não conseguia evitar.

Poderia ser que essa convenção ainda era aceita nestes dias? Na Escola da Harmonia, e na Academia do Sábio...

— Mas mesmo isso não foi o suficiente para evitar todos os perigos. Mesmo humanos normais, gentis, pessoas amigáveis comandando vidas inteiras, podem esquecer sobre isso em momentos de raiva. Pesquisas indicam que noventa por cento do estresse das pessoas vem de outras pessoas. Como manter uma sociedade segura se, em um meio segundo de intensa ira, você poderia facilmente decepar a cabeça da pessoa a sua frente?

O discurso do falso Minoshiro nos encantou tanto que não podíamos refutar. Pensando nisso, esse traço pode ser um de muitas funções de autopreservação.

— Uma vez que a abordagem psicológica estava esgotada, foi substituída por medicações designadas para regular o equilíbrio hormonal no cérebro. Esse método também logo revelou ter suas limitações, porque era impossível manter pessoas em medicação pela vida inteira. A próxima noção para se prevenir foi a etologia, focada na sociedade dos primatas chamados bonobos. Bonobos são às vezes chamados de chimpanzés pigmeus, mas enquanto chimpanzés são conhecidos por lutar entre si, às vezes até a morte, eles quase não têm comportamento violento nos grupos bonobos.

— Como? — Eu perguntei.

— Quando o estresse e a ansiedade entre os membros de um grupo aumentam, eles os aliviam através de comportamento sexual. Homens e fêmeas adultos iniciam o coito, mas mesmo indivíduos infantes do mesmo sexo irão esfregar suas genitais juntos em um ato de brincadeira sexual. Primatologistas e sociólogos decidiram que era de extrema importância mudar a atual sociedade violenta para uma de amor, como a dos bonobos.

— Como eles mudaram?

— O livro “Para uma Sociedade de Amor” lista três passos. O primeiro era ter contato físico frequente como segurar as mãos, abraços, e beijos na bochecha. O segundo passo era encorajar esse contato entre os sexos iguais e opostos desde a infância até a puberdade. Eles queriam tornar isso um hábito para brincadeiras sexuais, e os orgasmos consequentes, para dissipar tensão entre as pessoas. E o terceiro passo era encorajar o sexo livre entre humanos adultos. Claro, contraceptivos confiáveis e convenientes seriam necessários.

Nós olhamos uns aos outros.

— ... então, pessoas de antes não eram assim? — Maria perguntou apreensiva, suas sobrancelhas franziram.

— Eu não tenho nenhuma informação sobre a situação atual da sociedade, então é difícil definir uma comparação, mas na civilização antiga, havia numerosos níveis de tabu acerca de contato físico. Além disso, em vários lugares, o amor homossexual era proibido e oprimido. O mesmo ocorria com o sexo livre.

Para nós, contato físico era perfeitamente normal, uma ocorrência rotineira. Meninas com meninos, meninas com meninas, meninos com meninos, adultos com adultos, crianças com crianças, e adultos com crianças. Basicamente, contato íntimo entre pessoas era uma coisa boa. (A única exceção seria qualquer ato que resultasse em gravidez; após cumprir certas condições, uma permissão poderia ser obtida pelo Comitê de Ética.)

— Mas mesmo isso não era o suficiente. Simulações de computadores prediziam que a sociedade iria colapsar dentro de dez anos mesmo se todas as medidas propostas fossem realizadas perfeitamente. O motivo para isso era claro. Todos os membros em uma sociedade de TC possuíam o equivalente a um botão de lançamento de um míssil nuclear. Se apenas uma pessoa perdesse o controle, a infraestrutura inteira seria destruída.

Como antes, eu podia apenas entender o que metade do que o falso Minoshiro dizia. Mesmo assim, a gravidade do que ele dizia era clara.

— Comportamento Humano pode ser controlado com educação, psicologia e eugenia. E como humanos também são um tipo de primata, etologia também pode ser aplicada para criar um ambiente mais seguro. Entretanto, para proteger a sociedade que decairia, nenhuma rachadura poderia ser permitida em suas paredes. A solução final trazia a ideia de que humanos não eram nada mais que mamíferos e para tratá-los como tal.

Que irônico. Quando a humanidade tinha adquirido o poder para se igualar aos deuses, era mais do que podiam aguentar. Para controlar tanto poder, os humanos decaíram ao nível de macacos, e então de macacos para meros mamíferos.

— Um etologista chamado Konrad Lorenz que viveu o auge da civilização passada disse que animais poderosos como lobos e corvos, e animais sociais, tem um mecanismo inato que os fazem evitar conflito com membros de sua própria espécie. Isso é chamado de controle de ataque. Por outro lado, animais fisicamente mais fracos como humanos e ratos não tem muito controle e tendem a lutar entre si, ao ponto de um massacre violento. Então, se os usuários de TC forem viver juntos em uma sociedade, uma restrição poderosa para violência é essencial.

— Mas como fizeram isso? — Shun sussurrou como se estivesse falando consigo mesmo.

— O único modo efetivo era alterar o genoma humano. DNA de lobos foram decodificados e o gene responsável pelo controle de ataque foi isolado. Mas isso não era o suficiente. Algo que poderia suspender sua habilidade de ataque também era necessária.

— Então, em outras palavras, você está dizendo que o controle de ataque dos humanos não veio dos lobos, mas de outra criatura incrivelmente poderosa?

— Não há dados concretos sobre se os humanos conseguiram manipular os genes, então só há apenas suposição. Entretanto, dois mecanismos foram inseridos no código genético. O primeiro foi o controle de ataque normal idêntico ao dos lobos. E o segundo foi algo chamado de “Feedback da Morte”.

Um choque percorreu meu corpo. Feedback da Morte era algo que escutávamos direto desde a Escola da Harmonia, e era cravado profundamente em nossa consciência. Era a forma mais humilhante e horrível de uma pessoa morrer.

— No início, eles surgiram com “Feedback da Consciência”, o que poderia atrapalhar a concentração de uma pessoa quando queriam atacar alguém com TC, para complementar o mecanismo de controle de ataque. Mas os resultados eram inconsistentes, então não era possível usá-lo no mundo real. Seu substituto foi o simples e efetivo “Feedback da Morte”. “Feedback da Morte” opera nos seguintes princípios. Quando a mente reconhece que o usuário está tentando machucar outro humano, seu TC inconscientemente se ativa e para as funções de seus rins ou paratireoide. Isso resulta em sintomas como desconforto, palpitações no coração, e suor, que podem ser intensificadas por educação, condicionamento e hipnose. Nesse estado, a maioria das pessoas para de atacar, mas se continuarem, asfixia tetânica causada por baixo cálcio no sangue, ou parada cardíaca causada por um aumento súbito de concentração de potássio as matariam.

— Isso é... impossível. — Satoru engasgou.

Se tudo isso fosse verdade, no que exatamente temos acreditado em todos esses anos? Que nós, humanos, havíamos ganhado o poder dos deuses por causa de nossas virtudes era o que nós sempre fomos ensinados. Mas na realidade, sem a ameaça da morte nos prendendo, nós teríamos lutado até a humanidade ser destruída. Isso não significava que éramos animais ainda mais básicos do que lobos e corvos?

— Isso é mentira! É tudo besteira. — Maria disse cerrando os dentes.

— Mas faz sentido. — Shun disse em uma voz baixa.

— Então você acredita?

Ao invés de me responder, Shun perguntou ao falso Minoshiro. “... os Espíritos Malignos apareceram depois disso?”

Eu franzi as sobrancelhas. Isso era onde nossa conversa havia começado, mas o que os Espíritos Malignos tem haver com o que o falso Minoshiro estava falando agora?

— Não. Espíritos Malignos, ou sofredores da síndrome de Raman-Klogius, existiam antes da queda da civilização anterior. Demônios do Karma, casos de síndrome de Hashimoto-Appelbaum, presumidamente foram desenvolvidos durante o mesmo período. Mas no caos durante as guerras da Idade das Trevas, sua existência não ganhou muita atenção.

Naquela época, eu não entendia muito bem o que o falso Minoshiro queria dizer. Mas, pensando agora, Espíritos Malignos e Demônios do Karma seriam perfeitamente camuflados em um mundo reinado pela violência onde o sangue a morte eram ocorrências rotineiras.

— Então você está dizendo que nós apenas começamos a notar Espíritos Malignos e Demônios do Karma quando nossa sociedade nasceu? Mas isso não parece que nossa sociedade foi estruturada especificamente para prevenir que eles aparecessem para começar? — Shun perguntou afiado.

— Eu não tenho informações sobre a sociedade atual, então eu não posso responder sua pergunta.

— Mas o que você disse antes sobre o Feedback da Morte, por que os Espíritos Malignos...

— E-Espere um pouco. — Satoru interrompeu, parecendo envergonhado. — Shun, você pode entender o que está acontecendo, mas nós não estamos conseguindo seguir. Espíritos Malignos, essa coisa de Klogius, o que exatamente é isso? E qual a diferença entre Espíritos Malignos e Demônios do Karma?

— Síndrome de Raman-Klogius é outro nome para...

Nós estávamos ouvindo atentamente, mas o resto da sentença nunca seria ouvida.

O falso Minoshiro e o caranguejo-tigre que o segurava foram repentinamente envoltos em ardentes chamas brancas.

Nós pulamos para trás instintivamente, e encaramos o que estava acontecendo atordoados. O caranguejo-tigre soltou o Minoshiro e tentou escapar. Ele balançou suas pinças largamente e arrastou seu corpo pelo chão, mas não pôde apagar as chamas. Ele soltou um grunhido, se enrolou em suas costas e eventualmente parou de se mover.

O falso Minoshiro se contorceu para frente e para trás, seu corpo secretando quantidades grandes de um líquido grosso e espumoso. Mas era como se as chamas tivessem vindo do fundo do inferno e não podiam ser extinguidas. Sua pele borrachenta derreteu no calor e rapidamente se queimou.

Então, algo estranho apareceu acima do corpo queimado do falso Minoshiro.

Uma mãe segurando uma criança. Era como uma imagem tridimensional. Ela olhou apelativamente para trás com seus olhos lacrimejantes. Respirar se tornou doloroso, e nossos corpos congelaram.

Maravilhosamente, as chamas desaparecem no momento que a mãe apareceu. Mas parecia que o falso Minoshiro tinha jogado sua carta trunfo tarde demais. Linhas estranhas começaram a oscilar e ela lentamente escureceu e de repente desapareceu.

Então, o falso Minoshiro parou de se mover também. Uma fumaça branca e mordaz se levantou de seu corpo queimado.

— Quem...? — Satoru perguntou roucamente, olhando para nós.

— Quem o quê? — Maria perguntou inexpressivamente.

— Você viu aquilo, certo? O jeito que o fogo queimou era inacreditável. Tem que ter sido criado por cantus, eu acho. Mas quem fez?

Quando ouvimos uma voz vir de trás de nós, todos pulamos.

— Eu fiz.

Era uma pessoa vestida em roupas de padre. Ele era extremamente alto, com olhos afiados, como os de um falcão. Sua barba parecia feita, e gotas de suor cobriam sua cabeça.

— Aquilo era um demônio cujas palavras iludem a mente e enredam o espírito. Devem ser incinerados à vista. O que vocês estão fazendo aqui?

— Estávamos... — Satoru tentou responder, mas estava sem palavras.

— Viajando pelo Rio Tone para o acampamento de verão. — Maria terminou a frase.

— A escola deu permissão para virem tão longe? — O padre cruzou os braços, parecendo mais sombrio a cada segundo.

Nós não nos atreveríamos a mentir mais uma vez.

— ... Desculpa. Nós não tínhamos permissão. Não queríamos vir tão longe. — Shun disse indiferente.

— Entendo. Não queriam? Então vocês prenderam caranguejos por diversão, acidentalmente pegaram aquele demônio, e então acidentalmente entraram no assunto de Espíritos Malignos.

Nenhum de nós disse uma palavra. Não havia como sairmos dessa situação.

— Eu sou Rijin, um padre eremita servo do Templo da Pureza. Eu sei muito bem quem todos vocês são.

O padre eremita tinha a posição mais alta na divisão educacional do templo. Eu rapidamente lembrei. Ele estava ao lado do sacerdote chefe Mushin como (segundo em comando) na iniciação da cerimônia.

— Vocês virão ao templo comigo. Não serão permitidos voltar à vila até o sacerdote chefe Mushin ser informado sobre isso.

— Por favor, espere um pouco. Antes de irmos, eu tenho apenas uma pergunta. — Shun apontou para os restos do falso Minoshiro. — Tudo que aquilo disse era uma mentira?

Nossos corações foram perfurados em nossos peitos enquanto ouvíamos. Ele não deveria ter perguntado, eu pensei. Assim como eu esperava, Rijin olhou para nós com um brilho estranho em seus olhos.

— Você acredita?

— Eu não sei. É bem diferente do conhecimento que aprendemos na escola. Mas havia uma consistência no que ele dizia.

As palavras de Shun expuseram o que todos nós sentíamos. Mas nessa situação, honestidade pode não ser a melhor saída.

— Vocês quebraram as regras ao vir para este lugar o qual não pertencem. Além disso, foram corrompidos pelas palavras de um demônio. Apenas isso é um pecado grave, mas o problema real é muito maior. — A voz de Rijin era tão fria que congelou nosso sangue. — Vocês violaram a fundação do nosso Código de Ética, o últimos dos dez preceitos, “Não desacatar as Três Joias”. Vocês caíam nas palavras de um demônio, e questionaram os ensinamentos de Buda. Por isso, eu devo selar os seus canti imediatamente.

Rijin procurou em seus mantos e mostrou um maço de papéis. Dois dobrados ao meio que formavam uma forma humana. Ele colocou cinco em nossa frente.

A cabeça e o tronco da figura estavam cobertos em símbolos estranhos que pareciam sânscrito. Eu lembrei da cerimônia no Templo da Pureza quando o sacerdote chefe Mushin tinha temporariamente selado meu cantus.

Não, eu pensei. Eu não quero perder meu cantus. Eu não quero reviver aquele sentimento de desamparo que eu tinha antes de me graduar na Escola da Harmonia. Mas nós não estávamos em posição de desobedecer.

— Agora, eu vou selar seus cantus dentro desses emblemas. — Rijin anunciou. — Façam seus emblemas levantar.

Eu levantei a figura na minha frente. De repente, lágrimas estavam escorrendo dos meus olhos pelas minhas bochechas.

— Shun Aonuma! Maria Akizuki! Satoru Asahina! Mamoru Itou! Saki Watanabe! — A voz de Rijin ecoou pelas árvores ao redor. — Seu cantus foi selado aqui!

Uma multidão de agulhas, como vespas carmesim, voaram da mão dele e empalaram as figuras pela cabeça, torso e membros.

— Que sua mente se cure... que deixe seus desejos serem queimados... e que as cinzas retornem à vasta terra selvagem... — Rijin entoou em uma voz baixa enquanto os emblemas queimavam em uma explosão de chamas.

Aquilo era tudo falso. Não era nada mais que uma simples sugestão hipnótica. Não deveria ter me deixado incapaz de usar meu cantus. Só funcionou antes porque eu ainda era jovem, e não havia feito meu próprio cantus ser meu. Agora, meu cantus pertence inteiramente a mim. Ninguém pode retirá-lo.

Eu desesperadamente tentei me convencer disso. Mas Rijin não havia terminado o ritual de selamento ainda.

— Lembrem, vocês desistiram de seu cantus na frente de Buda no Templo da Pureza. Através da compaixão de Buda, vocês receberam sum mantra puro do sacerdote chefe Mushin, invocaram um novo espírito, e ganharam seu cantus novamente. — A voz de Rijin assumiu uma nota sinistra. — Mas vocês, que saíram do caminho de Buda, seus espíritos voaram, e seus mantras desapareceram. Levem isso a sério. Vocês nunca lembrarão de seu mantra novamente.

Ele estava usando um gancho cravado em nosso inconsciente, como durante a cerimônia de iniciação. Para criar dar uma nova ordem, tudo que ele tinha que fazer era puxar aquele gancho, e controlar nossas mentes como ele quisesse.

Naquela época, funcionou como mágica. O mantra cravado em nossos corações que usávamos havia desaparecido sem deixar rastro.

Eu olhei para meus amigos, tentando encontrar um raio de esperança, mas todos tinham a mesma expressão. Satoru estava balançando sua cabeça, com o rosto torcido como se estivesse prestes a chorar.

— Agora, vamos. — Rijin nos deu um olhar desdenhoso. — Não arrastem seus pés. Devemos chegar ao templo antes do pôr do sol.


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Referências e Notas de Tradução

  1. Foi optado por realizar as traduções dos nomes das criaturas em japonês, ao invés de deixar os originais (Bakenezumi, Fujou Neko e Fuusen Inu), para uma compreensão mais adequada. O mesmo ocorreu para o Espírito Maligno e o Demônio do Carma (Akki e Gouma, respectivamente), citados a seguir.
  2. Os nomes das vilas foram diretamente pegos do original japonês, sem tradução, pois acredito que sirva para uma maior imersão na história. Entretanto, algumas traduções devem ser feitas aqui para melhor compreensão do texto. Miharashi (見晴) significa Visão, Suisha (水車) significa Moinho de Água e Kogane (黄金) significa Dourado.
  3. Uma raça do peixe carpa.
  4. Em japonês, a palavra para rizocéfalo também possui a palavra saco.
  5. Ordem alfabética pelos sobrenomes na escrita japonesa.
  6. Pequena boneca japonesa.
  7. A lesma marinha tem o mesmo kanji de “mino” no nome, que significa capa de chuva.